“O cinema, essa arte paradoxal, privilegiada, diferente de todas as outras. O cinema, lugar dos pais mortos, desaparecidos, ausentes para uma ou duas de cinéfilos por vir. E eu só posso ser o mais obstinado, amarrado à própria ‘história’ como um molusco ao rochedo.”
Pode a crítica de cinema ser também íntima? Desconstruímos a perpétua imagem de fanfarrão, soturno e quase misantropo que a cultura pop tem “pintado” com pinceladas agrestes, ou a automatização que nos Estados Unidos nos facultou como “mero cargo”. Pois bem, Serge Daney, um dos mais influentes nesta arte — e se é que podemos chamar de arte o exercício de pensamento sobre os filmes (claro que sim!) — é um desses estandartes do pensamento e da emoção, coabitada no mesmo quadrante, sendo que a Sétima Arte se une à sua pessoalidade e vice-versa.
Escritor da revista “Cahiers du Cinéma”, tendo dirigido-a entre 1973 e 1979, passando depois para o jornal “Libération”, onde produziu alguns dos seus celebrizados textos, entre os quais uma estabelecida comparação entre ténis, outra das suas paixões, e o cinema [ver o filme-ensaio-documentário de Juliet Faraut, “L’Empire de la Perfection” de 2018], e em 1991, realizando o seu desejo de uma “crítica lenta”, dotada no lirismo e sem concessões editoriais, com a revista “Trafic: Revue de cinéma”, projeto que acompanhou até à sua “despedida” prematura aos 48 anos de idade, vítima do HIV (inconvenientemente, esse destino fatídico também lhe conferiu uma aura trágica e mítica). Daney revelou-se ao longo das gerações como uma lenda urbana de uma certa nata crítica-intelectual, dos seus filmes e impressões, dos seus ensinamentos e ideias, das suas gravuras emocionais. Hoje, podemos encontrar nesta sociedade, e principalmente em Portugal, onde tinha afinidades e afetividades, alguns “filhos e primos” de Daney.
Em 2005, editado pela Angelus Novus, é lançado um conjunto de textos provenientes da pena de Daney, intitulado “O Cinema que Faz Escrever”, no qual se incluem os amores a Paulo Rocha e o tão debatido texto “Travelling de Kapo”, o seu último escrito, que, aliás, tem a honra de abrir este “Perseverança”, com edição da The Stone and the Plot (nota: tendo em 2020 publicado uma versão portuguesa do completíssimo livro de Donald Richie, “Ozu”). Ao longo de 140 páginas, acompanhamos Daney numa derradeira entrevista a Serge Toubiana, publicada originalmente em 1994, dois anos após a sua morte.
Este triste fado envolve a conversa, dividida em tópicos que mapeiam a alma órfã, incompreendida e viajada de Daney: da busca pelo pai, fantasiosamente induzido pela sua família como uma voz pontuada nas telas, à defesa da televisão, passando por um certo cinema francês, a viagem a Hollywood atrás das dinastias clássicas e a desilusão ao deparar-se com a indiferença com que essa indústria trata os filmes e seus mestres como produtos comuns. Há ainda a marginalização dos movimentos pós-Maio de 68 e as suas viagens, sempre acompanhadas por um postal de visita, uma tela fora da tela, um cinema fora do seu espaço natural. Em tom confessionário, Daney revela-se e descodifica-se num gesto sem julgamentos nem autocensura, transparece a sua homossexualidade, abordando a cru, e deixando escapar a sugestão de um “mercado sexual” que frequentava, por exemplo, nas suas idas e voltas pelo território indo-pacífico, ou na morte incrustada em alguns dos seus discursos, antevendo uma última flecha de luz.
Há aqui algo de mortuário, como se desse corpo despejasse toda a sua energia, memorialista e ritualística, num tom de testamento. Bem sabido é que, na altura, já sob os primeiros sinais de uma morte anunciada, ambicionava escrever um último livro, longe do registo de críticas selecionadas e coletadas, possivelmente uma obra autobiográfica com título escolhido – “Perseverança”. Como bem sabemos, o livro não se concretizou, mas o jornalista Toubiana, transparecendo um tributo ao idealista, concede esta transcrição sob o nome projetado. “Perseverança” não é um livro sobre cinema e, fechando-se nesse círculo, não é teoria nem tese; é um objeto de prova de que o cinema tem gente dentro, que vive e respira cada frame e de como a cinefilia se apresenta como um continente imaginário, ora individualista, ora coletivo. Conhecemos Daney, esse tão importante crítico da segunda século XXI, e na sua companhia “ouvimos” as suas preces, o outro Daney, intimista e carnal, sem com isto desassociar-se ao Cinema.
A tradução portuguesa é de Luís Lima, anteriormente encarregado de trazer ao nosso mundo editorial os amores e devaneios de outro crítico amado, que virou cineasta em toda a sua força, François Truffaut (“Os Filmes da Minha Vida”, Orfeu Negro, 1ª edição 2015). O produtor, e amigo, Paulo Branco é autor do posfácio.