"O Estrangeiro", ilustração de Jacques Ferrandez
"O Estrangeiro", ilustração de Jacques Ferrandez

Romance de poucas páginas, de escrita sintetizada, sem nenhuma palavra a mais ou a menos, soa a resumo Europa-América de um grande tratado humano ou cárceres da vida, contudo, o número um dos livros do século XX, segundo o jornal “Le Monde”, é de uma grande escritura, independentemente da perspetiva que for. 

Escrito em 1942, pelo filósofo e ativista de esquerda Albert Camus (1913 – 1960), “O Estrangeiro” (“L’étranger”), é todo um romance depurado, despido de lirismos exagerados ou supérfluos, é, no seu âmago, um livro que com tão poucas palavras e descrições mínimas consegue soar-se na precisão, e no ensurdecimento como se fosse berrado por via de um megafone. Quem me dera escrever assim! Aliás, que lição de escrita este “estrangeirado” nos dá. 

Voltando ao livro, ambientado na Argélia, colónia francesa, “amaldiçoado” pelo sol branco, seguimos Arthur Meursault, homem que, no qual somos atropelados desde o primeiro parágrafo, recebe um impreciso telegrama sobre a morte da sua mãe – “Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames” – sem saber ao certo do dia da sua partida, “será que foi ontem”. E que na chegada ao tão anunciado enterro, nenhuma lágrima é vertida em memória da sua progenitora. Detalhe inútil para a condução de caráter, até que nos dias de hoje muito se discute sobre a manifestação de sentimento, ou do “homem sério”, termo inoportuno, que pouco ou nada de expressão deve exibir. 

Mas para Meursault, a falta de lacrimação, não é indicador da sua falta de amor da mulher que o “pariu”, é antes o primeiro sinal de que estamos a deparar com um protagonista, também ele narrador, atípico, algo passivo, mas acima disso desengonçado para as leis estabelecidas de uma sociedade. É assim no seu trabalho, como na sua vida amorosa e até na amizade, comporta-se ao sabor do vento, deixa que a vida lhe leve e as decisões … essas ficam por outra altura. Tal personalidade, problemas lhe trará, quando um crime é cometido (Culpa do Sol? Culpa do domingo?), e o seu julgamento revela-se mais um linchamento público à natureza do homem do que ao ato ilícito cometido (a vida do árabe, a “verdadeira” vitima, nada vale aos olhos da justiça francesa).

Camus através dos olhos inadaptados de Meursault viabiliza um cenário de absurdo, não apenas inteirado na figura do protagonista, mas na sociedade que a envolve, ditada por regras e costumes, todas elas satirizadas pela fúria que emanam ao som do castigo divino. E é nessa absurdidade, que evidenciamos um retrato crítico do colonialismo ali centrado enquanto contexto, dos árabes como parte dessa cenografia, de descartabilidades ou citados sem nome, nem identidade, seres conquistados que parecem apenas partilhar espaço. Camus faz essa denúncia sem demagogias, sem agendas escancaradas, um tom raro, porém inteligente, ainda mais vindo de um assumido ativista de esquerda, que alguns anos depois, “cabeceava” o antigo colega e amigo Jean-Paul Sartre (que tanto elogio dirigiu ao “O Estrangeiro”) pela sua defesa ao stalinismo. “Contra todas as formas de totalitarismo”, manifestaria ele.

O livro não vive desse apontar de dedos em riste, nem no explícito desse efeito, vive, por outro lado, do “homem-espelho” que Meursault resolve ser, sem culpas no cartório, ou sem remorsos, uma existência que correu e deixou correr pela cabeça dos outros. Contra protagonistas assertivos e fazedores dos seus próprios destinos, Camus preparou-nos um personagem sem robustez, só que a inteligência não o abandonou. E talvez seja esse um dos calcanhares de Aquiles, essa sua sapiência, e como ela se torna numa maldição contra as correntes imperativas da sociedade. Há um questionamento e mais que isso, uma oposição, mesmo que silenciosa. Meursault vira “anticristo”, cognome auferido durante o seu julgamento, mas é na prosa, principalmente proveniente no segundo ato que deparamos com uma complexidade emocional, e isso é implícito nas suas poucas descrições inerentes, nesse caso, a do encarceramento, na diferenciação dos “pensamentos de homem livre”, que o condenam a rejeitar o seu próprio cativeiro. 

“O Estrangeiro” – transformado em filme pela mão do italiano Luchino Visconti, com o ator Marcello Mastroianni na pele do inerte [em 1967], e ainda um versão turca (“Yazgi”, dirigido por Zeki Demirkubuz, em 2001) – encontra-se editado em Portugal pela “Livros do Brasil – Dois Mundos”, com tradução de António Quadros. Um dos obrigatórios, canónicos, mesmo contra todos aqueles que desejam desfazer cânones pelo simples gosto, uma das obras do século XX precisamente. 

Espero que os cães não ladrem esta noite. Julgo sempre que é o meu”

By Hugo Gomes

"Não ter já mais nada para dizer e continuar a escrever é um crime. Porque não tem o direito de continuar a escrever se não tem nada para dizer. - José Saramago

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