Qual é a marca que o momento em que estamos a ler um livro deixa nessa experiência de leitura? É possível lermos uma obra literária sem que esta seja afectada pelo que nos rodeia? O simples facto de alguém de quem gostamos bastante ou de quem temos as suas opiniões em boa conta recomendar um título de uma autora ou de um autor vai influenciar a disposição em que vamos pegar num livro? Estas são algumas perguntas que por vezes assolam a minha mente quando me recordo de algum título que li recentemente ou há algum tempo. Em conversa com amigos percebi que alguns são completamente indiferentes ao contexto da leitura. Eu não consigo. Vou dar alguns casos muito concretos para vossa avaliação e enfado. Estava a ler o “Bábi Iar”, do Anatóli Kuznetsov quando a minha avó teve um problema de saúde e quando recebi a notícia de que esta faleceu. O livro ainda que duro, contém alguns pedaços de humor e consegue balancear na perfeição o crescimento do protagonista para a idade adulta enquanto se depara com todo um dia-a-dia de violência onde a guerra provoca estragos no território e na mente da população. Sim, achei o livro bom. Se vou voltar a pegar nele? Provavelmente não, estará sempre contaminado com a carga “livro que estava a ler quando morreu alguém muito importante na minha vida”. Vamos a outros exemplos mais díspares. Certa vez uma pessoa que um dia foi bastante importante para mim ofereceu-me um livro. Entre erros vários, dos quais não saio incólume, a importância dessa pessoa perdeu-se totalmente e da forte proximidade nasceu uma enorme e dolorosa distância. Portanto, como podem imaginar, esse título já saiu da minha estante. Infantil da minha parte Claro que sim. Mas era isso ou ter um livro para o qual não conseguia olhar na minha estante. Se comprei esse título noutra edição? Óbvio! Se voltei a falar com essa pessoa. Não.
Seguem agora o terceiro e quarto exemplos. Quando estava a ler o “Baumgartner” do Paul Auster deparei-me com algumas situações do enredo que absurdamente pareciam estar a falar com a minha vida naquele momento. Foi uma experiência estranha onde uma história ficcional foi ao encontro da minha vida, de alguns dos meus dilemas e das minhas sensações e sentimentos. O resultado foi que a intensidade com que li este drama de Paul Auster raramente poderá ser igualado por outra leitura. Vamos ao quarto exemplo, a Jane Austen é uma das minhas escritoras preferidas. Raro foi o livro desta autora que não li mais do que uma vez. Curiosamente, o destino quis brincar comigo e colocou-me a reler o “Persuasão” quando tive uma enorme desilusão do foro pessoal. Posso tentar separar a obra e o momento em que a estava a reler? A verdade é que, por agora, ainda que seja apaixonado por este livro, não consigo retirar esta carga que ele adquiriu por arrasto de uma enorme desilusão ao qual ele é alheio. Os livros fazem parte da minha vida. Porém, estão lixados com f grande porque também são conspurcados pela minha existência. Como é óbvio, não serão contaminados para mais ninguém, mas apenas para mim. Mas, uma das razões para ter uma mini-biblioteca em minha casa passa também por admirar os livros não só pelo seu conteúdo, mas também por aquilo que eles representam para mim. Por exemplo, tenho a minha edição do “O Velho e o Mar” que li quando estava no sétimo ano de escolaridade. Estranhamente, quando pego no livro, parece que as memórias perdidas desse período regressam. É algo irracional que se imiscui em algo tão racional como a leitura.
Todos os livros que estão em minha casa, ou pelo menos uma parte considerável, guardam uma história. A amolgadela quando ia no autocarro. O castanho de um café entornado. A areia da praia em algumas páginas. O pêlo do meu cão. A etiqueta da loja onde foi comprado. O talão com a data (que um dia irá desaparecer). A memória de como e quando chegaram às minhas estantes. Para além disso, revelam e muito períodos da minha vida. Quando trabalhei na Fnac do Chiado, fui contagiado pelo entusiasmo em relação à literatura victoriana. Conclusão, no ano seguinte boa parte das minhas compras e leituras andaram pela Jane Austen, Elizabeth Gaskell, as irmãs Brontë, Anthony Trollope, George Elliot, Charles Dickens e por aí fora. É Victoriano? É para comprar. E também para ler. Ou a fase em que tinha de ler tudo do Bukowski, Hemingway e afins. Ou agora, mais recentemente, na Ler Devagar, todo o encanto que estou a ter em me deparar com autoras da América Latina como Aurora Venturini, Amparo Dávila, Fernanda Melchor, Silvina Ocampo, Samanta Schweblin, Guadalupe Nettel, Nona Fernandez, Alia Trabucco Zerán e por aí fora.
Se me encontrarem nesta fase, vão deparar-se com alguém que procura cada vez mais descobrir autoras. “Ai, ele é woke”. Não. Porém, a abertura crescente que o mercado tem em relação a autoras e a consciencialização cada vez maior de que até 2019 li sempre mais livros escritos por homens do que por mulheres leva-me a querer recuperar um pouco o tempo perdido. O critério é sempre o livro despertar a minha atenção. Felizmente, existem muitos livros escritos por mulheres que interessam e me interessam, não só por serem bastante recomendáveis, mas também por trazerem toda uma perspectiva que me obriga a olhar para mim e para o Mundo de outra forma. Já estou a dispersar. Mas, curiosamente, este tema dos livros escritos por mulheres até remete mais uma vez para o lado emocional que estes pequenos tesourinhos têm na minha vida. Certa vez, ao estar todo contente por arrumar os livros com uma ordem coerente e propiciadora da venda cruzada ao mesmo tempo em que revelava algum do meu conhecimento do assunto, uma colega minha olha para a mesa e diz “ISTO NÃO TEM UM ÚNICO LIVRO ESCRITO POR UMA MULHER”. Foi algo inconsciente, não propositado. No fundo, fiz uma mesa do caralho. Literalmente. Daí para a frente procurei que todas as mesas onde arrumo livros tenham uma certa paridade. Nem só livros escritos por mulheres. Nem só livros escritos por homens. Um critério que sigo para a encomenda de livros. E transportei esse método para as minhas leituras. Encomendar livros faz parte da minha rotina profissional. Regra geral gosto de fazer as encomendas com outra pessoa, se possível que saiba do assunto e tenha uma perspectiva que apresenta pontos de encontro mas também de divergência em relação a mim. Um dos livros que chegou a mim graças a isso foi o “Lapvona” da Otessa Moshfegh que é um romance histórico marcado por um delicioso e macabro humor negro. Ou uma autora como Amparo Dávila que tem alguns contos onde o que não é dito tem um efeito intenso na nossa mente. O que é esta personagem? Este final aconteceu como o interpretei? No caso desta autora mexicana, o primeiro livro que li dela chama-se “The Houseguest” (sim, li em inglês) e foi sugerido por alguém por quem tenho grande consideração profissional. Logo aí o livro já estava a ganhar pontos.
Esta é a minha estranha relação com os livros. Não só com o seu conteúdo e pelo seu papel como objecto que marca uma parte considerável dos espaços vazios da minha casa, mas também pelas emoções que traz consigo. Posso esquecer que li o “Middlemarch” quando estava em isolamento profilático durante a pandemia? Talvez. Se o quero fazer? Não. Recordo-me da confusão que ia na minha cabeça, nas mensagens trocadas com amigos nos intervalos de leitura e por aí fora. É algo perigoso porque muitos momentos positivos e negativos passam a estar entrecruzados com livros. Não obstante, é um risco que prefiro pisar. E, enquanto os livros fizerem parte da minha vida, terão sempre de lidar com esta minha faceta emocional, com a minha incapacidade de os dissociar de um feito profissional, de uma paixão, de um desgosto amoroso, de uma morte, da figura que os recomendou. É uma sensação de enorme deleite o de olhar para estante e perceber que temos ali várias obras sugeridas por pessoas que nos marcaram e que continuam a marcar quer pela sua presença no nosso dia-a-dia, quer por esse papel que tiverem no nosso “eu leitor”. Dissociar os livros dos sentimentos que rodeiam a sua leitura é algo que para mim é impossível.