“Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira” é uma das citações mais conhecidas das obras de Lev Tolstoi, não só por dar o mote para o drama de enorme fôlego que é “Anna Karenina”, mas também por ser algo praticamente indesmentível. A dinâmicas familiares intrincadas fazem parte de diversas obras de Natalia Ginzburg, tais como “Léxico Familiar” e “Todos os nossos ontens”. “O Caminho da Cidade”, reeditada em Portugal pela Relógio d’Água, o primeiro romance da autora italiana, demonstra desde logo esse capacidade da escritora em vaguear pelos caminhos escorregadios e problemáticos das relações familiares. “Odiava a nossa casa. Odiava a sopa verde e amarga que a minha mãe nos punha à frente todas as noites e odiava a minha mãe” diz a jovem protagonista deste livro, logo nas páginas iniciais desta novela, pronta a não deixar dúvidas em relação ao que pensa da sua habitação, da sua progenitora e de tudo o que a rodeia.
Tal como Natalia Ginzburg, esta adolescente faz parte de uma família numerosa. A irmã mais velha, Azalea, é casada, vive na cidade, tem um filho e passa boa parte do tempo a pensar no amante. Giovanni, o irmão que vem a seguir à protagonista, é um jovem adulto que não parece ter um grande rumo para a sua vida ou uma grande vontade de trabalhar. Gabriele e Vittorio, os mais novos, pouco interessam para a jovem e para o enredo. O mesmo não se pode dizer de Nini, o primo, um órfão que cedo parte para a cidade para trabalhar numa fábrica. A cidade desperta um fascínio por estes quase adultos, em contraste com o campo, onde vivem e assistem a uma vida marcada por várias privações. No centro do enredo está quase sempre a jovem protagonista e os laços que cria com aqueles que a rodeiam. Deixa-se levar quase sempre pelo destino, não o contraria. Muito provavelmente também não poderia. Os seus sonhos são modestos e passam sobretudo por ir para a cidade, símbolo de liberdade e modernidade, mas tudo o resto está longe de a entusiasmar.
A falta de fulgor, de paixão e um certo ambiente pessimista, letárgico, a trazer à memória obras como “Os Indiferentes”, de Alberto Moravia, marca os laços destas personagens e das suas ligações. Talvez a dinâmica entre Nini e a personagem principal, seja a excepção, mas, até esta se encontra longe de parecer ter futuro ou algum fulgor. Quando a relação com Giulio, um estudante universitário, filho de um médico, conhece um episódio inesperado, a vida desta adolescente entra rumo a um destino que tanto lhe parece trazer estabilidade como instabilidade e uma rotina semelhante à da irmã. O que esperar num período onde a mulher ainda está numa condição social mais delicada do que o homem, sobretudo nos espaços rurais? O casamento por conveniência surge como uma das poucas soluções para conquistar a ascensão social, ou a independência dos progenitores, fruto dos parcos recursos financeiros ou de uma fraca educação escolar, que o digam algumas figuras que povoam o enredo desta obra lançada em 1942. Uma das poucas figuras que fogem a este destino é Antonietta, uma viúva, mãe de dois filhos, mas nem esta consegue escapar aos preconceitos de uma sociedade machista e conservadora.
Composto por capítulos curtos, um estilo de escrita seco e lacónico, “O Caminho da Cidade” encapsula muitos dos atributos que a sua autora iria incutir nas suas obras posteriores. Se em “Todos os nossos ontens” e “Léxico Familiar” o contexto histórico está bastante presente e influência as diversas figuras que povoam o enredo, já no livro reeditado pela Relógio d’Água, este é abordado mais ao de leve, quase sem se notar. O contraste entre o campo e a cidade é explorado através do quotidiano destas personagens, seja pela forma como o espaço urbano povoa o imaginário das mesmas, ou simplesmente pelo modo como simboliza uma libertação. O desconhecido atrai. Ou, pelo menos desperta curiosidade. O campo é o que estas figuras conhecem. Os seus cheiros, os seus ritmos, as suas limitações, a sua pobreza, a sua dureza. A cidade traz um caminho rumo a algo diferente, mas nem por isso mais fácil para estas personagens. Na sua primeira obra, escrita com o pseudónimo de Alessandra Tornimparte, Natalia Ginzburg deixa de modo claro e notório alguns dos traços e temas que viriam a marcar os seus livros. É o caminho ideal para começar a descobrir a sua obra.
A nova edição de “O Caminho da Cidade” é publicado pela Relógio d’Água: