Escrever sobre o luto envolve uma complexidade que por vezes origina os mais íntimos poemas, os tratados além da carne e da alma, e os romances mais doridos possíveis. Só que “O Meu Pai Voava” [editora D. Quixote] não integra nenhuma dessas formas. Para descrevê-lo há que ir à génese, e porque motivo existe um livro dessa natureza.
Tânia Ganho – romancista (“Apneia”) e reconhecível tradutora do nosso meio (Toni Morrison, Annie Ernaux, Leila Slimani ou Yukio Mishima, entre outros) – escreveu algo que segundo a sua perspectiva “fugia ao conceito de livro”, o envio a uma amiga, também ela escritora [Patrícia Reis], que prontamente afirmou a publicação como tal. Ao folhear “O Meu Pai Voava” entendemos a dúvida da autora, desde a sua estrutura, retalhista, malabarista e preenchida, voluntariamente, por vazios sob vazios, pontuando por um lado íntimo, pessoal, e por vezes resistente a quem, a própria confessa, pouco dada a choros.
Fruto do seu pesar, o seu pai, o tal alado do título, falecido em Fevereiro deste ano, que adquiriu uma vida artificializada através destas páginas, memorandos acerca da sua passagem terrestre, em jeito memorialista é claro, sempre reformulado no presente como uma aura a quem-lhe recusasse a eterna despedida. Foi uma escrita de impulso, libertar e condensar essa existência em quase 200 páginas num vaivém emocional. Portanto, ler “O Meu Pai Voava” é entrar no privado sem ser-se convidado, situar-se ao lado da autora / protagonista, reconfortá-la dessa perda, e porventura guiá-la à dita emancipação alicerçada a essa orfandade tardia, o vazio daí emanado, não somente estrutural nos parágrafos reunidos em acasos com acasos, como na autora que tentará preenchê-la na aceitação do seu quotidiano ou nos placebos que o dia-a-dia lhes dá. Perdido para o Alzheimer (“(…) a sua ideia íntima de Inferno”), mesmo que a pneumonia seja a decretação na certidão de óbito, é essa doença neurológica que Ganho acusa como “assassino”, só que a revolta, a eventual indignação, não reina, ao invés disso, é o luto a ser trabalhado, desconstruído, reflexivo, procurado no simbolismo ao nosso redor.
O que é o luto afinal? Como se traduz e resume num ponto de vista literário? Muitos autores o fizeram de maneiras distintas, e daí notar-se a maleabilidade deste “ser nefasto”, o qual manifesta-se em diferentes essências e corpos. Tânia Ganho, feita São Sebastião, de espada em punho, enfrenta o tal dragão fúnebre, esquivando como pode das duas labaredas expiradas, decapitando-o por fim num golpe misericordioso, e exibindo a reptiliana cabeça como troféu. É cruel a asserção de tal facto, mas o luto depois de trespassado revela-se num “prémio”, num sintoma exaltante de como continuamos vivos. Ninguém nos disse que viver seria fácil.
“As palavras foram-lhe morrendo, uma a uma, até restar o silêncio. Um silêncio impotente e aterrador.”