No primeiro contacto que temos com Timofey Pavlovich Pnin, um professor universitário russo, emigrado nos EUA, este encontra-se num comboio, rumo a Cremona, onde vai participar numa conferência. Porém, o narrador faz questão de salientar desde logo que o protagonista apanhou o transporte errado. O que dá o mote não só para o lado algo desastrado e azarado do docente, mas também para o papel participante e a espaços espirituoso do narrador. Um pouco a fazer recordar o papel do narrador de “Jacques, o Fatalista”, de Diderot, esta figura cuja identidade será revelada numa fase mais adiantada da narrativa, não tem pejo em demonstrar o seu sarcasmo, efectuar óptimas descrições e denotar uma certa perfídia. “Certas pessoas – e eu sou uma delas – odeiam finais felizes. Sentimo-nos vigarizados. Os males são a norma. O destino não deve deter-se” diz desapontado quando percebe que o expatriado consegue contornar os contratempos e chegar ao seu destino. Estamos perante aquela que é considerada a “mais divertida obra de Nabokov”, ainda que esse tom humorístico seja regularmente entrecortado com um estilo mais sério, a espaços melancólico e até com pequenos traços de tragédia. Tanto rimos de Pnin e de como “Pniniza” os espaços onde permanece, seja um quarto alugado ou o gabinete da universidade, como nos comovemos com esta figura solitária, que não se parece encaixar bem em nenhum lugar e nem sempre ou muito raramente é levada a sério.
Esse tom agridoce do livro é exemplarmente representado no quinto capítulo, quando o reencontro com vários expatriados russos é palco para convívio, diálogos eruditos mas relativamente pueris sobre “Anna Karenina”, bem como para um momento de maior introspecção quando Mira Belochkin, outrora um interesse amoroso do protagonista, entretanto falecida num campo de concentração, é recordada. A História tem um papel de relevo na vida de Pnin. Saiu da Rússia para evitar os estilhaços da Revolução Russa, abandonou a França para fugir à II Guerra Mundial (ou, como diz, à “guerra de Hitler”). Nos EUA encontrou emprego como professor de russo na pouco relevante universidade de Waindell, onde convive num meio onde a hipocrisia e a puerilidade estão muito presentes (paradigmaticamente demonstrado no penúltimo capítulo). Tal como o protagonista de “O Ofício” de Serguei Dovlatov, Pnin está longe de encontrar a prosperidade e o sucesso no sonho americano. Esta figura, que nem é um herói nem uma vítima, tem muito de Vladimir Nabokov, o autor deste agradável romance. Tal como a personagem principal, o autor saiu da União Soviética ainda bastante jovem, esteve na Europa e partiu para os EUA (até regressar à Suíça). Ambos leccionaram em universidades (Nabokov em Cornell e Wellesley) e é muito provável que o escritor de “Lolita” se tenha inspirado em diversas figuras com quem conviveu no meio académico e junto dos expatriados russos.
Se Nabokov manteve uma relação duradoura com Véra, já Pnin teve um matrimónio fugaz com Liza, uma psicóloga. Também Liza é apresentada ao longo deste livro, bem como Eric Wind, o pai do filho desta, e uma série de personagens que rodeiam o quotidiano do professor de russo e os diversos capítulos do livro. Dividido em sete capítulos, compostos por vários subcapítulos, fruto de terem sido na sua maioria publicados originalmente na The New Yorker, “Pnin” deixa-nos perante alguns episódios da vida da figura do título que muito dão a conhecer sobre o mesmo. Um desses casos é o segundo capítulo, quando o docente aluga um quarto na casa de Laurence Clements (colega de faculdade) e da esposa deste Joan, que inicialmente o encaram com algum desdém, apesar de, aos poucos, até apreciarem a sua presença. Pnin raramente consegue ficar muito tempo na mesma habitação, é um indivíduo algo solitário e estudioso da cultura russa, que continua a ter bastantes erros no seu inglês e que está regularmente acompanhado por um manual desactualizado. Fisicamente é descrito da seguinte forma: “Idealmente calvo, bronzeado, bem escanhoado, (…) beiço superior simiesco, grosso pescoço e um tronco de homem forte (…) uns pés de aspecto frágil, quase femininos”. Uma descrição assaz reveladora do aspecto do protagonista e do modo como é encarado pelo narrador.
As descrições são sempre muito vívidas, recheadas de metáforas, prontas a deixar bem sublinhado as características de alguns episódios ou personagens. Essa vívidez advém e muito do mérito de Nabokov a utilizar a adjectivação de modo a que o leitor rapidamente comece a criar uma imagem mental dos espaços e das figuras que povoam o enredo. “Uma das muitas coisas empolgantes que Lake ensinava era que a ordem do espectro solar não é um círculo fechado, mas uma espiral de tons, do vermelho-cádmio e laranja, passando pelo amarelo-estrôncio e pelo verde-claro paradisíaco, até ao azul-cobalto e aos violetas, e neste ponto a sequência não segue de novo para o vermelho, antes passa para outra espiral que começa numa espécie de cinzento-alfazema e vai até aos tons de Cinderela que transcendem a percepção humana”, ou “Foi uma pena ninguém ver o espectáculo na rua vazia, onde a brisa da aurora enrugava um grande charco luminoso transformando os fios telefónicos nele reflectidos em linhas ilegíveis de ziguezagues negros”. A espirituosidade e o tom mordaz fazem parte do livro, mas também um tom a espaços derrotista e triste. É no acerto com que conjuga estas diferentes nuances, alicerçado a um protagonista deveras curioso e a uma série de descrições que tanto podem provocar um sorriso como um aperto no peito, que “Pnin” tem os seus principais méritos.
“Pnin” está publicado em Portugal pela Relógio d’Água. A tradução ficou a cargo de Telma Costa.