Provavelmente uma das grandes surpresas ou confirmações no mercado editorial português em 2024, “Caruncho” traz ecos de Shirley Jackson, Juan Rulfo e do realismo mágico latino americano, enquanto nos apresenta a uma narrativa a duas vozes, entre uma neta e a sua avó, marcada por ressentimentos, ecos do passado que são bem audíveis no presente, tudo num registo muito preciso e conciso. As cerca de cem páginas deste livro são suficientes para atribuir largura emocional e histórica à narrativa, para desenvolver os traços e a espessura das personagens, com Layla Martinez, na sua primeira incursão pela ficção, a criar um romance denso, inquietante, a espaços perturbador. A habitação onde se desenrola uma parte considerável do enredo é cenário e personagem desta história. Aqui temos alguns desses primeiros ecos de Shirley Jackson. Tanto em “A Maldição de Hill House” como “Sempre Vivemos no Castelo”, o espaço da casa influencia e mexe com os protagonistas, quase como se tivesse vida. Uma situação que é sublinhada logo nas primeiras frases de “Caruncho”: “Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego”. 

Se em “Sempre Vivemos no Castelo” tínhamos a dinâmica muito própria entre duas irmãs em evidência, em “Caruncho” esta relação é entre avó e neta. “Velha de merda” diz a protagonista logo na primeira página do livro, pronta a sublinhar as dificuldades de relação com a familiar. “Nesta casa não se herda dinheiro nem anéis de ouro nem lençóis bordados com iniciais, aqui os mortos deixam-nos camas e rancores. Sangue ruim e um lugar para nos deitarmos à noite, eis o que se herda nesta casa”. Existe crueza nestas descrições e uma certa malícia, exacerbadas ainda pelas alusões aos anjos que cobrem uma das camas, quatro figuras semelhantes a louva-a-deus. É verdade, aqui não poderíamos encontrar figuras angelicais. Tudo é sombrio e negro, fruto de desilusões e ressentimentos antigos. A mãe da protagonista saiu cedo desta casa. O avô faleceu e a avó mantém-se como uma figura importante da sua vida, ainda que a relação das duas esteja longe de ser a mais agradável. Sobre os vizinhos, sabemos que evitam esta casa e estas mulheres. Alguns até cospem à porta. O que terá acontecido? Sabemos também, logo de início, que esta figura que nunca conhecemos o nome, a neta, é desempregada, apenas trabalhou a cuidar do filho dos Jarabos, teve de se apresentar a um juiz e esteve recentemente detida. 

O que terá feito a protagonista? Cometeu algum crime? Que segredos guarda? São algumas perguntas que Layla Martinez, não inocentemente, desperta na nossa mente. E aqui é impossível não recordar as dúvidas e o mistério que Shirley Jackson desperta em relação a Constance e à sua família em “Sempre Vivemos no Castelo”. A escritora madrilena rapidamente desfaz algumas dúvidas, mas desperta outras. Será a protagonista culpada ou inocente no que diz respeito a um desaparecimento? O que se passa efectivamente dentro desta casa? O roupeiro parece ter vida própria. A habitação aparenta ter estados de espírito. Tudo e todos parecem temer este espaço e estas mulheres. Isso não impede que boa parte da vizinhança fale e especule sobre estas duas figuras femininas, prontos a denunciá-las, a trazer memórias do Franquismo e dos denunciadores (note-se a referência da “velha” aos paseos). Do passado que permaneceu no presente temos ainda a subserviência de alguns elementos desta família para com os Jarabos, o que certamente terá adensado algum mal-estar na protagonista, quando os serviu, tal como outrora a sua avó o fez. 

Falar sobre “Caruncho” é falar também sobre um livro que se embrenha para as intrincadas relações entre mães e filhas, avós e netas. Não esperem grandes doses de afecto ao longo do livro. A neta refere-se regularmente à avó como a “velha”. A anciã não tem pejo em falar de modo bastante cru sobre a protagonista e a filha. O enredo é exposto através da perspectiva destas duas figuras femininas, entrecortada ora pela neta num capítulo, ora pela avó no outro. No primeiro capítulo temos o elemento mais jovem. No segundo, a avó faz questão de desmentir a  familiar. “Não acreditem em nada do que ela acaba de vos dizer” procura avisar-nos, enquanto nos transporta ao passado desta casa, à Guerra Civil e antes disso. As clivagens sociais neste território e não só são expostas, tal como as diferenças entre ricos e pobres, entre remediados e miseráveis, entre a cidade e o campo e nas zonas rurais mais afastadas. E a crueldade que pode existir até entre os miseráveis a partir do momento em que descobrem algum poder (e a história do bisavô da protagonista sem nome é exemplo disso). O poder dos pequeninos que se agigantam sobre os seus iguais, sem fazer comichão àqueles que estão acima de si. 

A violência percorre a alma da casa desde a construção, sobretudo sobre as mulheres. Estas defendem-se e vivem como podem, seja a ouvir as sombras ou a digladiarem-se com o meio que as rodeia. As sombras permeiam o espaço, presencialmente, ou metaforicamente, assumem um papel de relevo, inquietam, assustam, protegem. O real e o irreal convivem, a vida e a morte, qual cidade de Comala de “Pedro Páramo”. Layla Martinez conjuga estas duas dimensões, a terrena e a mística, de forma bastante precisa, quase natural, pronta a fazer-nos acreditar na superstição. E este é outro dos trunfos do livro: fazer-nos acreditar nas suas personagens. As frases que estas proferem são geralmente curtas. Quando se alongam, muitas das vezes perdem as vírgulas e adensam a cadência do pensamento das protagonistas, sobretudo da neta: “Eu pensava que as mulheres ricas tinham vidas mais fáceis neste aspecto que agarravam na mala de viagem e se iam embora e telefonavam a dois ou três advogados e ainda sacavam dinheiro ao ex-marido mas ali fiquei a saber que não é assim que os homens também as desfazem a pouco e pouco como a nós mas sem descanso como quem escava um buraco com uma colher.” “Caruncho” recupera traumas antigos e recentes de uma família e de um povo, de uma casa e de um território, sempre com doses de crueza à mistura e uma concisão que bate bem forte no âmago do leitor. 

“Caruncho” é editado em Portugal pela Antígona. A tradução está a cargo de Guilherme Pires.

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