O que conhecemos da literatura peruana? Se é verdade que os autores latino americanos contemporâneos estão bem representados no mercado editorial português, com nomes como Fernanda Melchor, Guadalupe Nettel, Mariana Enriquez, Lorena Salazar Masso, Alejandro Zambra, Nona Fernandez, Alia Trabucco Zeran, a terem algum destaque, também não deixa de ser notório que, por agora, o Perú não se encontra nesta vaga. Voltemos à pergunta inicial. Mario Vargas Llosa é o primeiro nome que vem à cabeça. Gabriela Wiener e Cesar Valejo aparecem logo a seguir. Renato Cisneros merece algum destaque. Mas existem lacunas que facilmente podemos desbravar. Uma delas é a autora peruana Karina Pacheco Medrano. Em “La voluntad del molle”, o seu primeiro romance, esta coloca-nos perante um drama comovente e envolvente no qual os segredos guardados por um ente querido, que a pouco e pouco são revelados, trazem à superfície episódios de preconceitos, violência, mentiras, desencontros e amores perdidos, que se unem à História de um país e do seu povo.
Como lidar com os segredos de longa data daqueles que nos rodeiam? Em “La voluntad del molle” esperamos um drama centrado no luto provocado pela morte recente da mãe de Elena e Elisa. Em parte é o que encontramos. Mas este livro dá-nos muito mais do que isso. Deparamo-nos com uma escavação aos segredos mais profundos de uma família. Essas descobertas acontecem quando, alguns meses após a morte da progenitora, duas irmãs decidem abrir os bens que esta deixou escondidos dentro de um baú, no interior do armário da casa onde habitam, em Cusco. Karina Pacheco Medrano leva a sério a questão de “tirar esqueletos no armário”. Não no sentido literal do termo, mas no metafórico. Um conjunto de cartas e fotografias traz toda uma série de informações que nos surpreendem e às duas irmãs, ao mesmo tempo em que estas são confrontadas com um lado desconhecido da mãe. O que as conduz ainda a revelações que as fazem mudar a perspectiva sobre quase todos os familiares, tais como o pai e os avós maternos, ao mesmo tempo em que se questionam sobre o que levou a progenitora a esconder tudo isto. Será que não confiava em ambas ou procurava protegê-las? Quereria que a informação do baú viesse ao de cima?
Como reagiríamos diante de informações semelhantes às que as protagonistas foram confrontadas em relação a alguém muito próximo? A perspectiva que temos é maioritariamente a de Elena, a irmã mais velha. Um dos méritos da autora é a sua capacidade de fazer com que a curiosidade das duas irmãs seja a nossa, que os seus ímpetos se tornem nossos, que a sua revolta e desalento se entranhe no nosso ser. Para isso utiliza uma fórmula muito eficaz: uma escrita simples, mas bastante “visual”, emotiva e recheada de diálogos, que faz com que facilmente consigamos construir na nossa mente aquilo que estamos a ler; uma boa definição do território de Cusco e dos espaços que envolvem as protagonistas; capítulos maioritariamente curtos, que contam com revelações ou informações relevantes em cada um deles, prontos a prender a nossa atenção e a despertar a vontade de ler o que vem a seguir. Mas não só. É o saber ritmar as revelações. Ora avança rapidamente com a leitura das cartas enviadas a Elena, a mãe destas duas irmãs, ora tarda e revelação do conteúdo das missivas para avançar por outras zonas. Note-se como esta investigação em volta da vida da progenitora altera as rotinas destas mulheres e afecta os seus empregos, as suas relações e as dinâmicas com os avós, a tia e não só.
Tanto Elisa como Elena são assoladas por uma mescla de ânsia e receio pelas descobertas, um sentimento previsível, ou não estivessem a lidar com informação que acrescenta novas camadas sobre os seus familiares e as suas vidas. “Era una vida diferente que estaba abriendo puertas a amplias avenidas desconocidas hasta entonces en mi propria vida” diz Elisa, pronta a corroborar essa nova visão que estava a criar em volta da progenitora. Pelo caminho, Karina Pacheco Medran aborda questões relacionadas com as desigualdades sociais no Peru, entre a cidade e o campo, aqueles que conseguem ter acesso à instrução e os que são praticamente deslocados do acesso à mesma. A autora avança ainda pela História do país durante o período que acompanha o enredo, com os ecos do Sendero Luminoso, a entrada de Fujimori a serem sentidos e mencionados. Também o racismo é sentido, com a população de tez mais escura e do campo a ser claramente alvo de preconceito. O próprio apelido pode condenar algumas personagens ao desprezo da sociedade, algo que é incluído com bastante harmonia no interior deste novelo de revelações que é desfiado por Elena e Elisa, duas irmãs que apresentam uma grande cumplicidade.
Quando terminamos o livro percebemos a referência à árvore mencionada no título. Esta é bastante resistente, cresce rápido e tem características muito próprias. A sua presença é sentida no desfecho e não só. Como menciona Elena: “Un molle no produce frutos jugosos que sirvan para calmar la sed ni para preparar mermeladas ni licores. Es su color, es su aroma, es su voluntad, es su fortaleza. A veces brota porque sí en los recodos de los caminos, sin que nadie haya derramado semillas ni le suministre riego en tiempo de sequía; otras veces no germina ni aunque se le plante en la tierra más fecunda y se le abone con guano de islas, agua dulce y fertilizantes químicos”. O que remete também para um romance proibido que brota em terreno pouco propício, ou simplesmente para um conjunto de informações sobre uma família que resistem ao tempo e à morte de alguns dos intervenientes. Romance tocante, pertinente e poderoso, “La voluntad del molle” supera as expectativas, inquieta-nos e faz com queiramos descobrir mais sobre a obra de Karina Pacheco Medrano.