Silvina Ocampo

“Espreitei o espelho, na esperança de que mostrasse o reflexo de seres menos angustiados, menos dementes que nós dois.”

É com fúria que encaramos o revanchismo na revisão / resgate de Silvina Ocampo (1903 – 1993), poeta, ensaísta e romancista argentina, que certa vez Jorge Luís Borges (sem apresentações), o seu habitual colaborador, considerou “uma das melhores poetas em língua espanhola, seja de que margem do oceano for”. Apesar dos louros dentro de uma elite intelectual-literária, Ocampo manteve-se numa sombra densa ao longo da sua existência, não somente pela sua natureza discreta, mas por essa sombra adquirir uma forma humana, Victoria Ocampo, a sua irmã, fundadora da revista literária “Sur”, e mais disposta, e exposta, ao meio artístico e pensante da época. Por outro lado, Silvina era também esposa do escritor Adolfo Bioy Casares (com quem escreveu “Quem ama, odeia“). 

Contudo, a sua retirada da escuridão tem sido cada vez mais proeminente ao longo dos anos, até, como acontece esporadicamente, ter-se convertido numa “escritora da tendência”. Mas nada que desmereça o seu valor criativo e lírico, prova definitiva apenas pegando na sua compilação de contos e ensaios com vertentes surrealistas e absurdistas – “A Fúria e outros Contos” – publicado pela Antígona, com tradução de Guilherme Pires. É um deleite que explora o que de mais negro possui a essência humana, imperdoável e sem auto-censuras quanto a eventuais sensibilidades, hoje muito prestadas aos dito leitores “ultra-sensíveis”. Ocampo equilibra-se entre o terror e o drama fechado com pequenos retalhos que, muitos deles, exibem a secura humana de uma crueldade intrincada. Conselho: ler um conto por dia / noite, e “pôr de molho” as suas ideias (leia-se também sensações) através de um sono prometedoramente sossegado, até porque o pessimismo romântico com que a escritora eleva os seus relatos, sempre finalizados por uma “punchline” (ou, não querendo restringir-se ao termo em questão, “plot twist”) emana-nos uma volte-face à perspetiva narrativa de cada um. São 34 escritos, dançando em temas como casamentos amaldiçoados, fantasmas, linchamentos pelos olhos de uma criança ou até imperadores romanos amaldiçoados pelos seus indicados torturadores do Império. 

É só escolher, ou seguir o enquadramento imposto pela edição que abre com um deleite surreal – “A Lebre Dourada” – um ensaio algo cartunesco nas possibilidades de encontro a um escritor imprimido e um leitor consciente e presenciado pelas próprias personagens. Outras (des)venturas, da nossa parte, recomendadas: “Prazer e a Penitência”, frutos proibidos revelados entre pinceladas e superstições dita argentinas, pinturas que revelam pecados carnais e premonições. “Vestido de Veludo”, sobre o preço mortal da estética e dragões estampados para o bem da moda. “O Castigo”, a inversão temporal que expõe uma condução narrativa de requinte cálculo. 

É um tutti-frutti imprescindível nas nossas prateleiras, e caso for o primeiro contacto com a escritora, então acredite em nós, que vai em “boas mãos”. Silvina Ocampo reúne-se com as suas sombras, trevas aliás, e desafia-nos a olhar com outra perspectiva ao conceito de “final feliz”. A grande redescoberta literária do nosso tempo!

By Hugo Gomes

"Não ter já mais nada para dizer e continuar a escrever é um crime. Porque não tem o direito de continuar a escrever se não tem nada para dizer. - José Saramago

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