“Inyenzi – uma barata” foi a designação pejorativa atribuída aos Tutsis do Ruanda durante décadas. Foi com este argumento hediondo, de que aquele povo não era mais que um inseto desprezível, que a violência ganhou gradualmente rédea solta, até 1994, quando em cerca de cem dias perto de um milhão de pessoas foram brutalmente assassinadas. Entre estas pessoas encontra-se praticamente toda a família de Scholastique Mukasonga. A autora, a viver em França, durante a escrita de “Inyenzi ou as Baratas”, é constantemente cercada pelas memórias do passado, pelo receio constante que viveu durante a sua infância e transição para a idade adulta. “Todas as noites, o meu sono é trespassado pelo mesmo pesadelo. Há alguém a perseguir-me, ouço como que um zumbido que se eleva até mim, um burburinho cada vez mais ameaçador” comenta logo no início do livro. Mukasonga é a escritora e narradora de serviço, a nossa guia para o vale da desumanização, uma mulher que tem “(…) tantos mortos a velar” e guarda em si a dor de ter sobrevivido. Em “Inyenzi ou as baratas” a autora regressa ao passado, às memórias da violência e das privações que marcaram a sua família, o seu povo, os Tutsis.

Nascida no Guicongoro, a escritora rapidamente teve a sua infância perturbada quando os primeiros pogroms aos Tutsis eclodiram no dia de Todos os Santos, em 1959. “Os homens, sem deixarem de gritar, precipitaram-se para dentro da nossa casa: atearam o lume à cubata coberta de palha, aos estábulos cheios de vacas; esvaziaram os celeiros de feijão, de sorgo; encarniçaram-se contra a casa de tijolo que nunca chegaríamos a ocupar. Não pilhavam, desejavam simplesmente destruir, apagar todos os vestígios, aniquilar-nos”. A experiência pessoal de Mukasonga é expandida para a colectiva, com este episódio negro da História do Ruanda e da Humanidade, a ser relatado sem concessões, qual ferida insarável, qual cicatriz que teima em reabrir e a explanar o lado mais nefasto do ser humano. A autora e a sua família tornaram-se refugiados no seu próprio país. Quando são forçados a ir viver para Gitwe, têm de lidar com as privações, a necessidade de explorar um território hostil e de lidar com as ameaças vindas da natureza e do Homem. São desenraizados no interior do seu próprio país, atirados para um Ruanda que não consideram seu, ao mesmo tempo que procuram criar novas raízes. 

O papel da Bélgica, país colonizador, após o Ruanda ter sido entregue pela Alemanha no pós-I Guerra Mundial, não é esquecido, ou não tivesse intensificado a rivalidade entre Hútus e Tutsis. A independência do Ruanda, a 1 de Julho de 1962 intensificou a violência dos Hútus contra os Tutsis, que desembocaria num genocídio. Ao longo de “Inyenzi ou as Baratas” acompanhamos como o contexto histórico influenciou Scholastique, a sua família e aqueles que a rodeavam. A narradora-escritora denota uma enorme capacidade de observação, uma perícia notável a transportar-nos para os grandes e pequenos episódios. A espaços com crueza, em outros momentos com alguma candura. Ficamos a saber como esta deveria caminhar de maneira a não ser espezinhada pelos elefantes, ou o modo de evitar “desrespeitar” um leopardo e garantir a sobrevivência. O capítulo em que a protagonista recebe a notícia que passou no exame nacional, é revelador da solidariedade entre alguns Tutsis e quase que enche o nosso coração de pequenas doses de esperança. Mas também somos atirados para o interior da violência dos militares e membros da juventude revolucionária do partido único, o MDR-Parmehutu. As mulheres e as raparigas eram alvo de violações e raptos. Os homens arrastados, agredidos, eliminados. O simples acto de ir buscar água ao rio, implicava serem alvo da acção repressiva dos militares, encontrarem pedaços de corpos de outros Tutsis e poderem perder a sua vida. 

Estas recordações trazem também as imagens fortes de uma violência aterradora. É possível seguir indiferente ao relato do episódio no qual uma familiar de Mukasonga foi esventrada com um machete e agredida com o próprio feto? Engolimos em seco, paramos a página, trememos e perguntamos, ingenuamente, “como é possível”. A seguir, largamos o livro e soltamos um “foda-se”. Até voltarmos a pegar nas páginas. Poderíamos perfeitamente colocar “Inyenzi ou as Baratas” ao lado de “A Eliminação” de Rithy Panh. Se o primeiro deixa-nos perante o genocídio no Ruanda, o segundo coloca-nos diante dos massacres dos Khmers Vermelhos no Cambodja, por quem presenciou os mesmos de perto. Rithy Panh e Scholastique Mukasonga sobreviveram a massacres. A segunda foi, tal como o seu irmão André, escolhida para sobreviver pelos seus pais e irmãos. Esta abriga em si as memórias daqueles que foram apagados da História, daqueles que existem na sua mente mas foram exterminados. Estas recordações devem ser conservadas, debatidas e estudadas. Conservam no seu interior a vida de um povo, de uma família, de seres humanos que, de um momento para o outro, se viram privados da sua dignidade, da sua segurança, do seu futuro. É um poderosíssimo livro de memórias, um testemunho duro, comovente, necessário e extremamente relevante.

“Inyenzi ou as Baratas” é publicado em Portugal pela editora Livros do Brasil. A tradução está a cargo de Maria Fátima Carmo.

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