“La distancia que nos separa” passa pela relação intrincada entre um pai e o seu filho, avança pelos meandros da História recente do Peru, navega pela biografia, livro político e romance, sempre numa escrita a vaguear o tom pessoal e jornalístico. Renato Cisneros, um dos nomes proeminentes da literatura peruana contemporânea, reconstrói a vida pública e privada do seu pai, o controverso general peruano, nascido na Argentina, Luis Frederico Cisneros Vizquerra, também conhecido como “el Gaucho”. Como reconstruir a vida de uma figura tão próxima e ao mesmo tempo distante como o seu pai? Esta foi uma questão que o autor certamente se terá colocado. “De lo único que ahora estoy seguro es de que no escribiré una novela sobre la vida de mi padre, sino más bien sobre la muerte de mi padre: sobre lo que esa muerte desencadenó y puso en evidencia” diz o escritor num ponto inicial da obra. Nessa fase ficamos a conhecer mais sobre este narrador tão filialmente próximo do general, os efeitos que uma separação provocaram na sua vida, a sua ida a um psiquiatra e como uma pergunta sobre os seus pais e a forma como estes se conheceram abre portas para algumas das suas inseguranças e introspecções.
Este é um livro sobre a memória e as falhas que esta apresenta. Dessas lacunas nasce a investigação desenvolvida pelo autor no que diz respeito à vida de “el Gaucho”, ao seu papel como militar, pai, figura pública, marido e amante, entre a imagem que procurava passar e aquela que ficou de fora da “sala de montagem”. É assim que conhecemos um grande amor do passado da vida de Luis Cisneros, ou a dicotomia entre a faceta de jovem rebelde e indisciplinado e o seu lado disciplinador como pai e político, a querer impor o respeito pela força e as regras. O filho descobre um homem que conhecia e simultaneamente desconhecia. Uma figura paterna a espaços fria e distante no trato presencial, mas caloroso na escrita, em particular, nas cartas que escrevia ao seu descendente. “No estoy seguro de que él fuera consciente de quién era en sus cartas, pero en todo esto tiempo he aprendido a querer al hombre que vivía fuera de ellas”. Este é acima de tudo um livro escrito por um filho que procura pelo seu pai, seja em fotografias, a entrevistar amigos e colegas deste, a investigar jornais e arquivos, a embrenhar-se pelas recordações, a procurar preencher os espaços em branco e a questionar as sombras.
Aos poucos conhecemos mais sobre Luis e Renato. Sobre pai e filho. Sobre o quanto a retirada do pai dos confins da memória, das omissões, dos silêncios, permite ao escritor descobrir mais em relação a si próprio e ao progenitor. Sobre o quanto as marcas dos antepassados parecem ressurgir nas gerações do presente. É, também, um retrato complexo em volta da História recente do Peru, com o papel de Luís Cisneros Vizquerra, a não ser esquecido, quer pelo lado duro e polémico com que exerceu funções de relevo no Gobierno Revolucionario de la Fuerza Armada, quer pelo lado nebuloso das suas acções. O contexto histórico é apresentado com uma assertividade que permite que quem não tenha um conhecimento profundo sobre a História deste país perceba o quão intrincado foi este período e a violência que o rodeou. Mas também o quão complexa era a figura de Luis Cisneros, ou não estivéssemos perante um militar amigo de Pinochet, admirador de Kissinger, amigo de várias das figuras mais nefastas do Proceso de Reorganización Nacional da Argentina.
Será que o meu pai matou alguém? Pergunta-se Renato Cisneros e procura indagar sobre o assunto, ou não estivesse a abordar a vida de um dos “vilões” da História. Uma figura que se encontra naquilo que comumente chamamos de “zona cinzenta”, um homem que coleccionou admiradores e detractores, que teve dois casamentos, seis filhos e deixou uma série de espaços em branco que “La distancia que nos separa” tenta preencher. Em determinado ponto do livro, encontramos Renato a revisitar a casa onde viveu temporariamente com os pais e os irmãos, em França. É um momento comovente e intenso. É nesta mescla da sinceridade e humanidade com que a vida familiar do general, a relação entre pai e filho, os relatos de Renato sobre o seu crescimento e transição para a idade adulta e o impacto que o progenitor teve na sua vida, mesclada com a crueza com que é exposta a violência do Peru durante o início da violência do Sendero Luminoso e os relatos dos desaparecimentos provocados pelo regime militar, que “La distancia nos separa” tem os seus pontos mais fortes. Tal como no recuperar de um pai após a sua morte, uma redescoberta de um familiar tão próximo e ao mesmo tempo tão distante, com algumas das questões levantadas pelo autor a reverberarem nas próprias inquietações e questões que o leitor poderá ter em relação aos seus familiares.
Essa distância que no título remete para a relação entre Renato e Luis, também fez parte da vida deste último, ou não estivéssemos perante alguém que cresceu na Argentina e regressa ao Peru durante a vida adulta, longe dos seus amigos e do seu local de formação. Um dos temas que o livro aborda centra-se precisamente no regresso dos filhos de emigrantes a um país que é o dos seus pais, que é o seu, mas apenas existe no plano mental e figurado, nunca estiveram nele. “El Gaucho” teve de conviver com essa realidade, tendo deixado toda a sua vida na Argentina, onde estudou num colégio militar. Esta formação no “país das Pampas” à “moda alemã” moldou a sua personalidade e a sua vida. “La distancia que nos separa” está longe de ser uma apologia de Luis Cisneros. É, acima de tudo, um livro que pretende envolver-se pela História e pela memória, pelo pessoal e o público. Luis Cisneros era polémico, falava o que pensava, era duro nas suas acções. O seu lado privado é exposto, tal como as suas acções públicas influenciam a sua vida privada. Renato Cisneros desassossega as memórias, faz com que estas apareçam, traz o passado à tona, faz uma radiografia do pai e do Peru, ao mesmo tempo em que escreve um livro onde as cicatrizes saram e reabrem, redescobre o progenitor e chega ao coração do leitor.