O desafio de tornar ou manter uma livraria independente relevante ou apetecível de ser visitada regularmente é algo que me inquieta com regularidade. Como fazer que um público habituado às livrarias dos grandes grupos como a FNAC, a Bertrand e em menor escala, a Almedina, frequentem um espaço que não consegue combater com as campanhas loucas de 20% em novidades e outras promoções maiores quando se trata de obras que não estejam ao abrigo da lei do preço fixo [com mais de 24 meses]? A juntar a isso, não temos o poder a nível de marketing de nenhum desses espaços. Não conseguimos (e ainda bem) pagar a influencers do TikTok, Youtube e Instagram para fingirem que gostam de se deslocar a livrarias ou para darem a ideia de que compram livros. 

O que falar da Wook, que é de outro campeonato onde parece que entramos na terra de ninguém e vale tudo. Como livreiro já tive a experiência de trabalhar em grandes e pequenos grupos, em livrarias de rua e de centro comercial. No último caso é jogar com batota. Já temos praticamente a certeza de que vai existir público a circular, nem que seja para fazer tempo para ir ao cinema.

O maior erro talvez seja procurar imitar essas livrarias de consumo massificado. Não podemos ter tudo. Temos de conhecer e saber o público que temos e adaptar a oferta ao mesmo. Temos de ter a consciência de que não podemos ter aos vinte exemplares de cada novidade. Mas, acima de tudo, temos de optar por uma oferta diferenciada. Se vamos copiar a oferta dos grandes grupos, como é óbvio quem está a visitar as livrarias vai optar quase sempre pela Bertrand, Fnac, etc. 

Como é que fazemos para diferenciar a oferta? Apostar forte em fundos de consignação compostos maioritariamente por não novidades (o que no mercado actual quer dizer livros com mais de três meses), de forma a que o cliente que entrar encontre logo ali o livro e não precise de encomendar na Wook. Alguns vendedores dizem achar piada às vendas da Ler Devagar do LX Factory por conter títulos que não vendem em mais lado nenhum. E isso acontece porque temos lá os livros e eles muitas das vezes são destacados. 

Uma das grandes apostas que tenho feito na livraria onde trabalho passa pelo alargamento da oferta em inglês, espanhol e francês. Sejamos sinceros, o público português procura ler cada vez mais em inglês. Gosta de ler em espanhol porque acha que sabe espanhol. E um grupo considerável lê em francês e gosta de demonstrar que o sabe. Esse público pode e tem de ser conquistado com livros ainda não traduzidos, com obras fundamentais na língua original. É a oferta certa para surpreender quem nos visita. Falo por mim, tenho conhecido um conjunto de autores que não poderia ter alcançado se estivesse apenas limitado ao mercado nacional. Por exemplo, a Antígona vai lançar em Outubro o “Huaco Retrato”, da Gabriela Wiener, em Portugal. Mas boa parte dos livros da autora, em castelhano, já estão nas prateleiras e mesas da Ler Devagar há largos meses.

A ideia passa por antecipar e ler o mercado editorial. Por exemplo, com a crescente procura de autoras e autores latinos, é impossível não fazer chegar obras de Maria Luísa Bombal, Elena Garro, Selva Almada, Renato Cisneros, Rafael Dumet, entre tantos outros. Ou, quando “El club Dumas” esteve esgotado em português e a edição em espanhol vendia rapidamente. Sobre essa antecipação. Após o lançamento de “As Primas” de Aurora Venturini, encomendámos logo “Nosotros, los Caserta”. Queremos ser surpreendidos dentro da nossa livraria. O que implica uma constante sede de descoberta. Mais outros casos poderíamos dar sobre os livros em francês (como termos encomendado todos os títulos de Scholastique Mukasonga), italiano (o que permitiu colmatar a falta de algumas obras fundamentais de Moravia no nosso mercado e trazer outros títulos de Alba de Céspedes) ou inglês. Temos ainda os fenómenos de redes sociais e TikTok aos quais não podemos escapar. Um título como “Cleopatra & Frankestein” que chega a vender aos vinte exemplares num fim de semana, permite pagar a aposta em livros de editoras como a Charco Press, a New York Review Books, Pushkin Press, etc, etc. 

Mas não são uma livraria portuguesa? Sim, temos de pensar nisso. Mas também temos de pensar que o português lê os livros em várias das línguas mencionadas, que temos muitos cidadãos de outros países a viverem em Portugal e muito turismo. O maior prejudicado talvez seja o editor português, o mesmo que se está a lixar para as livrarias durante a Feira do Livro de Lisboa, do Porto e em todas as feirinhas que possa “matar” o intermediário, a livraria. Desculpem, não se está a lixar, simplesmente faz descontos muitas das vezes maiores do que aqueles que faz às livrarias, “esquece-se” de fornecer livros nessa altura. 

Aliado a essa oferta do livro em língua estrangeira e aos fundos é essencial não descurar a oferta dos editores independentes, ou pequenos editores. Todas as livrarias os têm. Nós temos a obrigação de lhes dar um espaço condigno. A Cutelo, a KKYM, a Maldoror, a Falas Afrikanas, a Edições do Saguão, etc. A Antigona e Orfeu são independentes mas com outro estatuto como comprova a sua força na Feira do Livro de Lisboa e como muitos dos leitores preferem esperar para comprar os livros por lá. 

Mais acima mencionei o facto dos livros dos fundos serem destacados e dos independentes terem um espaço digno. A arrumação, a exposição e ter pessoas que saibam trabalhar a oferta, são elementos essenciais para que tudo funcione numa livraria. De nada me serve ter a melhor oferta, a mais diferenciada, se a seguir o livreiro a vai colocar toda na estante ou de modo caótico na mesa. A arrumação conta. É a maneira de funcionamos como uma espécie de algoritmo analógico. Se o cliente gostar deste livro que está arrumado aqui, vai gostar do que está ao lado cuja temática se assemelha e do outro que está nas proximidades. Isso permite também que um livro mais conhecido ou mediático chame a atenção para um outro mais desconhecido do grande público.

Nenhuma fórmula é infalível. E gerir uma livraria implica estar constantemente atento não só às vendas mas também às despesas e às falhas. Ao prazo de pagamento. Se hoje estou a vender muito, daqui a 60 dias isso pode não acontecer. Tenho de antecipar isso e pagar antecipadamente algumas facturas para evitar males maiores em dias de tempestade. As devoluções são essenciais para gerar créditos e minimizar erros, ainda que gerem a situação sisifiana de devolvermos livros e passado algumas semanas estarmos a trazer de volta em consignação. O que é uma consignação? É uma espécie de empréstimo do editor à livraria. Se vendemos, pagamos. Se não vendemos, o livro está lá para quem o procurar. As consignações são uma benção e uma maldição das livrarias. Bem trabalhadas, com reposições regulares, permitem ter uma oferta única, com um risco mais baixo. Mal trabalhadas, correm o risco de encher uma livraria com entulho. 

Outro elemento de relevo passa pelos lançamentos de livros. É essencial quer para dar a conhecer autores e novos livros, quer para estreitar relações com as editoras e os autores, quer para trazer mais público e fidelizar caras novas. Não é fácil gerir esta parte. Muitas das editoras preferem lançar nos grandes grupos. E alguns eventos podem, infelizmente, funcionar apenas como um meio de “passear” livros do armazém para a livraria e desta para o ponto de partida. O que também não pode ser descurado são as redes sociais, a comunicação para fora. Não podemos ter a oferta e não a passar para fora. Temos de demonstrar o quão apetecíveis são os nossos livros, o quanto acreditamos neles e queremos dar a conhecer. 

Todos estes elementos influenciam e muito as dinâmicas de uma livraria. Todos são importantes para manter uma livraria independente relevante. Certamente outras pessoas terão outra forma de pensar. O alfarrabismo é também uma solução a não descartar. E claro que ter livreiros que saibam o que fazem, que sejam capazes de surpreender o cliente e demonstrar paixão pelo que estão a recomendar, é fundamental. Mas, acima de tudo, sem leitores e clientes que comprem em livrarias independentes, estas deixam de existir. São estes quem tornam as livrarias independentes relevantes. São estes que fazem as livrarias. 

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