Alguma da literatura contemporânea peruana embrenha-se com vigor, engenho e doses generosas de reflexão pela vida de familiares próximos dos autores ou das personagens principais. Estes temas surgem ainda associados a uma busca pela identidade por parte dos escritores e/ou protagonistas, bem como pelo contexto histórico que rodeia o enredo. Existe uma forte reflexão sobre o passado. Um exemplo paradigmático é “La distancia que nos separa” em que Renato Cisneros investiga a vida pública e privada do pai, o controverso general Luis Cisneros Vizquerra. Outro exemplo que podemos dar é o marcante “La voluntad del molle”, no qual duas irmãs descobrem informações desconhecidas sobre a progenitora de ambas, recentemente falecida. Essa revelação permite um redescobrir de uma mãe que desconheciam enquanto reflectem sobre si próprias e a identidade de ambas. “Huaco Retrato” (em Portugal, “Retrato Huaco”, a ser publicado pela Antígona com tradução de Guilherme Pires), provavelmente a obra mais conhecida de Gabriela Wiener, embrenha-se por alguns desses temas. Assistimos a um questionar do passado e da forma de observar o mesmo, entre a memória histórica e a familiar, os grandes e os pequenos episódios, com um tom sagaz, muitas das vezes pontuado por alguns pormenores sardónicos.
A narrativa conta com três eixos fundamentais: um mergulhar sobre a vida de Charles Wiener, o tetravô de Gabriela, um viajante e explorador austríaco que esteve dois anos no Peru; o processo de luto da protagonista devido à morte recente do pai; os assuntos de ordem pessoal da autora, que vive em Espanha, mantém uma relação poliamorosa e tem uma filha. A interceptar todos estes ângulos está a marca da identidade, o exame que a Gabriela Wiener personagem, autora, faz sobre si própria, os seus antepassados, o seu presente. Tanto podemos ir de uma reflexão relacionada com a dinâmica a três que a protagonista tem com Rocí e Jaime, como podemos vaguear pelo passado, pelos pensamentos de Charles Wiener quando esteve em Paris, durante a Exposição Universal de 1878, para apresentar algumas das suas “descobertas” nas expedições pelo Peru.
No início do livro, encontramos a protagonista-autora, no Museu do Quai Branly, em França, onde se encontram peças arqueológicas trazidas do Peru para França pelo seu tetravô, Charles Wiener, entre as quais, os retratos Huaco do título. Este é o nome atribuído a estatuetas de cerâmica que representavam fielmente rostos indígenas e, dizia-se, capturavam as suas almas. Como lidar com a informação de que somos descendentes de um explorador que praticamente assumiu a autoria artística das obras que capturou? Charles Wiener, como a sua tataraneta demonstra, está longe de ser considerado um estudioso metódico e rigoroso. Foi acima de tudo uma espécie de “Indiana Jones”, um aventureiro e observador, que se deixava conduzir pela curiosidade e tinha uma visão do Mundo bastante problemática, sobretudo se for encarada com as lentes de hoje. A autora é descendente de um colonizador, de um europeu que foi ao Peru explorar o território e teve um caso com uma mestiça. Gabriela Wiener embrenha-se por essa filiação, por vezes com algum humor, sempre sem deitar água na fervura. Ela, tal como muitos peruanos, e não só, conta com um antepassado europeu.
Em determinado ponto do enredo, encontramos Gabriela a ler sobre a possibilidade do tetravô ter regressado à Europa acompanhado por um índio chamado Juan. O relato que este faz sobre os mesmos, é acompanhado por traços redutores, dotados de alguma superficialidade, de racismo, ou seja, de desconhecimento em relação ao outro. A autora critica esta visão, mas faz algo extremamente sensato: integra Charles Wiener no contexto histórico. O do Darwinismo Social, do eugenismo, “un refinado producto de su tempo”, ele próprio um judeu, alvo de discriminação, que conseguiu a nacionalidade francesa após conquistar estatuto como investigador. Mas não é só dos descendentes longínquos que Gabriela aborda. Também a relação desta com o pai é abordada, tal como a relação extraconjugal deste, da qual resultou uma filha, a meia-irmã da protagonista. Não deixa de ser curioso que, tal como em “La voluntad del molle” e “La distancia que nos separa”, duas obras peruanas recentes, mencionadas anteriormente, também tenhamos em realce este assunto de familiares com outras famílias e descendentes destas relações fora do matrimónio. No caso de “Huaco Retrato”, a autora utiliza o detalhe e algum humor para expor a capacidade do seu pai em dividir-se entre duas famílias, sem que nenhuma conseguisse praticamente dar por isso.
A faceta de cronista, capaz de ler o agora e de alcançar observações deveras pertinentes através do quotidiano, é exemplarmente demonstrado no modo como descreve a sua vida sexual e a sua relação poliamorosa. A solidão que se pode sentir numa cama, mesmo acompanhada por duas pessoas, o ciúme, as regras que se respeitam e se quebram. Tudo é exposto em capítulos curtos, alguns deles com duas páginas, que tanto se embrenham por Charles como por Gabriela, pelo final do século XIX e o agora, que abordam temas tão díspares e ao mesmo tempo tão próximos como a discriminação, o feminismo, a sexualidade, o racismo, sempre com um foco na memória, de onde viemos e aquilo que queremos ser. Se em “Sexografias”, Gabriela Wiener deixa-nos diante das suas crónicas, em “Huaco Retrato” vagueia pelas margens da História e da memória, ao mesmo tempo em que demonstra alguns dos valorosos atributos que a tornaram num dos nomes mais estimulantes da literatura latino americana contemporânea.