A escrita de Conceição Evaristo é de um lirismo doloroso, melancólico, triste, que toca em feridas profundas da nossa sociedade, do que é ser mulher, do que é ser negro, do que é ter nascido sem privilégios, sem futuro. Os contos de “Olhos d’Água” desenrolam-se maioritariamente em locais contaminados pela pobreza, muitas das vezes marcados pela violência, mas também dotados de doses assinaláveis de delicadeza e humanidade. O conto que empresta o título ao livro é exemplo disso. Tristeza e melancolia, belas metáforas acompanhadas de doses assinaláveis de crueza. A chuva que acompanha as lágrimas. As lágrimas que acompanham a chuva. Uma filha que se inquieta por não se lembrar da cor dos olhos da mãe. Ao indagar interiormente por essa informação recua à infância, às privações que tinha com os irmãos e irmãs, ao modo como a progenitora procurava esconder a falta de comida com jogos que entretiam os rebentos. É um conto que nos encanta e destrói emocionalmente com as suas palavras. 

Composto por quinze contos, todos eles na maioria com seis a oito páginas, “Olhos d’Água” tem o condão de nos apresentar a uma mestre da ficção curta, de em poucas páginas criar mundos e personagens que identificamos e sentimos. “Ana Davenga”, o segundo conto, é exemplo disso. A mulher do título é a companheira de um traficante. Enquanto aguarda por ele, preocupada, na casa do morro, ficamos a saber como se conheceram, a violência deste como criminoso e a sua fragilidade no sexo, o amor de um pelo outro. Os laços que os unem e os perigos que os rodeiam. Em “Duzu-Querença”, conhecemos uma sem-abrigo, como tantas outras. Uma mulher que se viu privada desde cedo de um futuro, quando foi trabalhar para um bordel. A pobreza, a discriminação racial e a violência, pontuam este capítulo. Crueldade e brutalidade marcam o conto “Maria”, onde uma viagem de autocarro é palco de um assalto e de uma desumanidade atroz. O espaço do meio de transporte, fechado, contribui para esta atmosfera sufocante, mas o que mais surpreende, ou talvez não devesse impressionar, é a crueldade humana, representada em toda a sua maldade. 

Em “Beijo na face” ficamos perante os efeitos de uma relação tóxica, de uma mulher que recorda o beijo do amante e a repressão do esposo, que anseia por se libertar e teme os efeitos da descoberta da infidelidade. A masculinidade tóxica aparece representada em toda a sua decadência. Salinda está presa num matrimónio em que as ameaças de suicídio, de assassinato, de perda da guarda dos filhos aparecem como ameaça constante. Nenhum homem morre por amor, mas teima em achar que pode ameaçar uma mulher desse fim pelo término desse sentimento por ele. Se a violência psicológica aparece retratada em “Beijo na face”, já em “Quantos filhos Natalina teve?”, ficamos diante de uma agressão física. Desta resulta um acto de liberdade, de uma mulher que se emancipa da morte. No caso de “Luamanda”, a relação de uma mulher com o corpo e consigo própria é abordada e desenvolvida, expressa com sentimento, fisicalidade e honestidade. 

Dizer que Conceição Evaristo é capaz de nos desfazer emocionalmente, é ser redundante ao terminarmos “Zaita esqueceu de guardar os brinquedos”, um conto no qual a inocência de uma criança em busca da irmã gémea e de um cromo é contrastada com a crueldade do espaço que a rodeia. A ajudar a esse dilacerar dos nossos sentimentos, está a beleza de algumas palavras que contrastam com a crueza do momento. A tristeza, a morte e a melancolia acompanham quase todos os contos. Como encarar a desesperança de “Os Amores de Kimbá” e “Ei Ardoca”? É de uma enorme dor, mas ao mesmo tempo de um inexpugnável realismo que se assoma da ficção para nos trazer às franjas dos espaços urbanos, aos desfavorecidos. Tudo numa linguagem que vagueia pelas fronteiras da poesia e da oralidade, sempre com uma construção muito própria das palavras. A utilização do hífen para reunir palavras por justaposição que se encontram ou contrastam, é algo regular na escrita de Evaristo, algo que permite todo um reforçar do significado das expressões utilizadas. Lava-lava, peitos-maçãs, dedos-desejos, vida-estrada, fendas-mulheres, fazem parte de um léxico muito próprio da autora, que remete e muito para a oralidade, mas também para uma utilização muito própria das metáforas e da adjectivação.

Existe sofrimento nos contos de “Olhos d’Água”. Existe um olhar para um Brasil que se distancia dos lugares de privilégio. Existe um embrenhar a fundo para os morros e as favelas. É um dos grandes livros de contos que chega ao mercado editorial português, uma aposta acertada, certeira e fundamental da Orfeu Negro.

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