É praticamente impossível terminarmos de ler “O Desencanto” e não o colocarmos lado a lado com “O meu ano de repouso e relaxamento”, de Ottessa Moshfegh. As protagonistas de ambos os livros são sardónicas, estão descontentes com o seu quotidiano, apresentam um certo desprezo por quase todos aqueles que as rodeiam, procrastinam como poucas, fazem compras a horas tardias, são solitárias e carregam nas doses de ansiolíticos. Estas são o espelho de jovens adultos que se encontram desiludidos com a sua rotina, com as suas vidas, insatisfeitos com a chegada à maioridade e ao desfazer dos sonhos que nem chegaram a nascer. Marisa, a protagonista do romance de estreia da madrilena Beatriz Serrano, está na casa dos trinta anos, trabalha num escritório numa agência de publicidade e tem como estilo de vídeo ver vídeos no Youtube. Quais vídeos? Todos. Sobre livros, como se fazem caramelos, teorias da conspiração, entre outros assuntos. Se está no Youtube, captou a atenção de Marisa. O mesmo não se pode dizer do seu trabalho na agência de publicidade. Logo no início temos lições da protagonista sobre como conseguir o prazo de entrega de trabalho que pretende, ou a utilizar o mínimo esforço possível para colocar em prática uma campanha para o Natal. Sabotar o capitalismo por dentro é o seu lema, ainda que faça parte da roda que o mantém a girar. 

Beatriz Serrano é simples e certeira a abordar o quanto a insatisfação em relação à carreira profissional pode afectar a vida pessoal de um ser humano. Marisa licenciou-se em História de Arte. Começou a trabalhar numa agência de publicidade. Deixou-se ficar. Fez um contrato. Quando deu por si, passaram alguns anos. Escolheu a opção mais cómoda para o imediato. A mais frustrante para o futuro. Deixou de lado o sonho de trabalhar no Museu do Prado. Este local é o seu preferido, a par do Carrefour de Quevedo (que funciona 24 horas por dia). Segundo a publicitária, o primeiro alimenta a alma, o segundo o estômago. Não é feliz, percebemos isso. E o sucesso deste livro, começa também por aqui, por explorar temas com os quais facilmente nos identificamos, com episódios que correspondem a algo que já vivenciámos. Tudo muitas das vezes com recurso a um humor a espaços áspero, que atribui uma falsa leveza, um sorriso no meio da tragédia da indefinição. Os diálogos de contingência no trabalho, o ter de estar num local que não traz motivação durante grande parte do dia, o desagrado com boa parte dos colegas, despertam a ansiedade em Marisa. Por sua vez, esta descarrega essa inquietação nos medicamentos, a ver vídeos no Youtube, ou a ter sexo ocasional com Pablo, o seu vizinho. 

É uma personagem solitária esta que Beatriz Serrano nos apresenta, representativa de uma fatia considerável da nossa sociedade. Em parte existe uma crítica implícita ao capitalismo e ao mundo laboral. À necessidade que a sociedade impõe para que tenhamos desde cedo um trabalho, que compremos produtos que não precisamos, o que faz com que descuremos planos para o futuro. Faz com que abandonemos os sonhos por uma realidade frustrante. Nem todas as pessoas conseguem fazer aquilo que gostam ou prosseguir na sua área de formação. É um facto e convém percebermos isso desde cedo. Mas não deixa de ser uma violência tremenda estar nove horas num local de trabalho (já a contar com a hora de refeição), com pessoas com quem não temos assim tanta vontade de partilhar o nosso tempo, a pensar na hora da saída. Todos os dias. E não deixa de ser curioso como “O Descontentamento” consegue ser tão espirituoso e ao mesmo tempo tão cortante e doloroso. Essa situação é particularmente notória quando observamos os ataques de choro que a protagonista tem antes de ir para o trabalho, ou o sofrimento por antecipação devido a uma reunião de team building.

O sucesso de vendas de “O Desencanto” remete e muito para este diálogo muito eficaz com uma geração ou com pessoas que já não cabem nela mas estiveram nesse lugar, um pouco à imagem de “O Ano de Repouso e Relaxamento”. A insatisfação em relação ao trabalho, a solidão, as contradições entre os valores anti-capitalistas que defendemos e a nossa conduta passiva no mundo laboral, os problemas relacionados com a saúde mental, surgem como ingredientes regulares do quotidiano de Marisa. Nem tudo é tratado com ligeireza e humor. O desaparecimento de Rita, a única colega com quem a head of creative strategy tinha algo em comum, é um desses casos. O facto da designação do seu cargo ser em inglês, é alvo de troça por parte da protagonista e acreditamos que da autora, ou não estivéssemos todos nós perante uma realidade onde as empresas e não só resolvem utilizar palavras aleatoriamente em inglês para parecerem modernas e profissionais. 

Quando chegamos ao ansiado momento da reunião de team building é praticamente impossível não esboçar um sorriso com as peripécias que envolvem esta actividade. É também improvável que este episódio não traga ao leitor algumas memórias de jantares de Natal de trabalho, ou algumas reuniões entre funcionários e chefias que todos já tivemos a “oportunidade” de participar. Um dos sonhos de Marisa é ser atropelada de modo a poder ficar de baixa médica durante um período de tempo. Esta ideia já passou pela vossa cabeça? Não mintam, ainda que seja algo infantil, é muito provável que isso já tenha acontecido. Beatriz Serrano entra na nossa cabeça, através de Marisa. É fácil identificarmo-nos com a personagem principal e com “O Desencanto”. É fácil rirmos com a protagonista e percebermos as suas dores. A simplicidade, a mordacidade e o desencanto andam lado a lado neste livro sobre o qual praticamente não conseguimos apresentar descontentamento.

“El descontento” é publicado em Portugal pela Bertrand, com tradução de Rita Custódio, sob o título “O Desencanto”.

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