David Machado / Foto.: Martim Machado

O escritor David Machado (“A Educação dos Gafanhotos”, “Índice Médio de Felicidade”, “Debaixo da Pele”) retorna ao romance depois de quatro anos trazendo um passeio dramático pelo mundo das redes sociais. “Os Dias do Ruído” (Leya/Dom Quixote) é todo estruturado em torno da vida e das considerações mais ou menos filosóficas de Laura – uma mulher que adquiriu celebridade por ter morto um terrorista em Paris. Viciada na atenção que ganha de uma rede social completamente louca e incontrolável, acaba por ter de refrear subitamente todo esse turbilhão e refugiar-se na velha casa da família que deixou há muitos anos. Mas aí terá de enfrentar outros tipos de ruídos…

Libro Ex conversou com escritor, que abordou a forma como as redes sociais e a existência digital hoje influenciam largamente a forma como vivemos, para além de mergulhar noutra das questões fundamentais da sua história: a maneira como a família molda aquilo que somos. Por fim, David Machado ainda faz considerações sobre o pequeno e problemático mercado literário português – destacando a inventividade dos autores para conseguir “equilibrar as contas”. “Não é possível publicar um livro e ficar dois ou três anos a viver de direitos de autor, é impossível”, observa.

Fragmentação

Para um mundo ultra-fragmentado, uma narrativa condizente: David Machado organiza o seu enredo em pequenas notas, que reúnem os personagens que gravitam à volta de Laura (a agente, o ex-marido, a irmã, a enteada, a melhor amiga, o pai) e as formas com que uma perturbada e ela própria uma vítima deste vórtice incontrolável, lida com eles.

Todo esse fluxo, onde poderiam ser acrescentadas novas notas a cada momento, resvalava muitas vezes em situações sem maiores consequências. “Era isso o que eu queria, falar de uma personagem dos dias de hoje, que não sabia para onde queria ir. Ainda que eu goste de narrativas estruturas com começo, meio e fim, aqui era mais adequado escrever assim do que parágrafos de uma página”. 

“Santa Dopamina”: o vício nas redes sociais

Às tantas a sempre perplexa protagonista fala em “santa dopamina”. A sua situação é caótica, mas ela não consegue desligar das plataformas – que descobriram inadvertidamente toda a necessidade humana de aceitação e recompensa.

“Estamos todos viciados neste jogo. Sempre que fomos às redes sociais, por qualquer motivo, o único objetivo é o de nos sentirmos parte, de que alguém olha para nós, nos ouve, que o que pensamos é válido e relevante. O ser humano sempre precisou disso, da aprovação do grupo, da comunidade. Quanto maior for a escala disso, mais impacto tem e mais viciante se torna. E muitas vezes são coisas tão básicas, tão supérfluas, que isso já chega para nos comunicarmos”. 

A catástrofe da superficialidade

Enquanto Laura navega no fio da navalha entre a popularidade e “haters” cada ve mais próximos, outras questões se põe, como a verdadeira faca de dois gumes que as redes podem ser para uma figura pública. Atualmente o caso “Diddy”, onde supostos “amigos” do ex-produtor musical estão a ser duramente penalizados, outros bem mais inocentes, como relata o escritor, também não escapam à fúria moralista das plataformas.

“Por acaso tenho acompanhado por curiosidade sociológica o caso de Dave Grohl, líder dos Foo Fighters que há tempos declarou no seu perfil que ia ter um filho fora do casamento. De repente, nas últimas semanas, tornou-se uma figura maldita, com milhões de pessoas a maldizê-lo. Então elas até suspenderam uma digressão. Essa ideia perturba-me muito, mesmo, a de deixar de sermos capazes de olhar para nós mesmos, das asneiras que fazemos, para usar as redes para nos pôrmos num patamar de moralidades superior que permite julgar os outros. O resultado geral é de que, a partir de um tratamento superficial a tudo, onde nada é aprofundado, a conclusão de certas coisas seja preto ou branco, certo ou errado, não há espaço para nuances”.

“Na verdade com esse romance era precisamente sobre um destes pontos que eu queria refletir, porque me faz impressão em que num ponto da história em que nós estamos, avanços tecnológicos científicos, filosofia, psicologia, nada disto importa e o que interessa é analisarmos um assunto superficialmente. É bastante triste, parece uma catástrofe”.

Ruído existencial

A partir de certa altura Laura tem que desligar-se, o que dá lugar a um outro tipo de turbilhão dá um caráter existencialista e universal à personagem de Laura. A instantes fragilizada, pergunta-se como as pessoas fazem para “se moverem pelo mundo, para ter um propósito” ou se “estão todas a fingir”.

“O ruído está em toda a parte. Estamos sempre a tentar nos livrar dele. Está muito na moda fazer meditação, por exemplo, que é uma forma de lidar com isso. A conexão disso com as redes sociais leva à uma questão que me aflige há muito tempo – essa ideia de que estamos tão metidos na dentro de nós, tão auto-centrados, que quando olhamos para os outros pensamos que está tudo bem, que eles não sentem as mesmas angústias e ansiedades do que nós. Perguntamos como as pessoas fazem para não sentir isso, mas é uma ilusão. O que temos é pudor em nos expor. As redes sociais poderiam permitir isso, mas não é o que acontece: só mostramos a parte bonita”.

A desconstrução do pai

Há um momento crucial no qual a protagonista tem que lidar com os fantasmas do seu passado familiar, marcado pelo autoritarismo do pai e da negligência da mãe. E surge a questão: até que ponto é a família a moldar aquilo que somos?

“Eu tenho uma visão idealizada da família e tenho tendência para acreditar que aquilo que nos acontece nos primeiros anos das nossas vidas é determinante e vai ficar connosco para sempre. Mesmo que tenhamos situações menos boas, por vezes traumáticas, a dinâmica de relações familiares é muito forte. A Laura teve uma infância complicada, mas são os pais dela, é isso que ela é. Não quer dizer que simplesmente os perdoe, mas também não quer perder essa ligação”. 

Um dos grandes momentos do livro é a desconstrução imaginária daquele pai gigantesco e amedrontador da infância. “Para mim essa descoberta é como naqueles momentos que regressamos ao lugar da infância, uma casa ou uma aldeia. Eu lembro que à certa altura quando já era quase adulto foi revisitar a casa da minha avó no Minho e tudo parecia uma cas de brincar. A igreja parecia muito menor, nas ruas eu conseguia esticar os braços de uma parede à outra – enquanto na minha memória a cidade era enorme. A relação com o pai é isso, dando um passo atrás percebemos a ilusão de ótica.”

O mercado português: a inventividade dos escritores lusitanos

David Machado anda há 20 anos nas lides literárias, o que não é fácil num país pequeno onde, como ele ressalta, “se vendem poucos livros e as pessoas não leem muito”. Estas características, no entanto, parecem ter efeito contrário nos escritores portugueses – os quais, surpreendentemente, publicam muito.

“Por causa disto temos de nos adaptar e tentar encontrar alternativas. Se eu vivesse em França, por exemplo, talvez fosse apenas romancista – que era o meu plano inicial. Mas aqui, no entanto, e isso para mim foi bom, acabei por produzir outros tipos de material – livros para crianças, romances infanto-juvenis, ensaios e até peças de teatro. Quando eu comecei e concorri a todos os concursos, ganhei um prémio de literatura infantil e, a partir daí, dividi a minha carreira entre trabalhos adultos e não-adultos. Escrever um romance e ficar a viver dois ou três anos de direitos autorais é impossível. Então gosto muito desta dinâmica, do tipo espírito português, do ‘safar-se’”.

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