O mercado português tem destas coisas: por vezes há autores que aparecem e desaparecem das livrarias, outros tardam a ter obras traduzidas entre nós, e depois há fenómenos como os de Keum Suk Gendry-Kim: em menos de um ano já temos disponíveis não um, nem dois, mas quatro livros seus. “Erva”, segunda investida da Iguana (chancela da Penguin para a banda desenhada) na autora sul-coreana, é a última edição desse quarteto, e talvez o título mais badalado além-fronteiras da obra de Gendry-Kim, com uma série de distinções e elogios de vários quadrantes da crítica literária.
Não é a primeira (nem será a última) vez que Gendry-Kim parte de uma história real trágica para criar uma BD. É recorrente vermos as suas personagens a lidarem com feridas que ainda não sararam na sociedade sul-coreana, com os efeitos da ocupação japonesa a fazerem-se sentir ainda na atualidade. A protagonista de “Erva” é uma das vítimas de um período conturbado, e o seu testemunho revela o pior da Humanidade.
Ok-Sun Lee passou por tudo. A sua história está cheia de pequenas e grandes tragédias, sofrimentos de tal ordem que se torna revoltante para quem lê. Acompanhamo-la desde criança, pouco antes do momento em que é vendida pelos pais. No período antes, durante e depois da II Guerra Mundial, ela passou por situações precárias e desumanas, tornando-se uma “mulher de conforto”, prostituindo-se e perdendo a dignidade. Deixa, até, de poder ter o seu nome coreano: os japoneses “rebaptizam-na” como Tomiko. Viajamos por vários momentos da sua vida enquanto, no presente, uma autora de BD está a descobrir a sua história e a pedir àquela mulher, agora idosa, para recordar acontecimentos perturbadores. “Se ao menos tivesse nascido rapaz”, como lemos às tantas no livro…
“Erva” é o retrato de um capítulo devastador da História da Coreia do Sul contado de uma forma que nos sabe arrasar em várias instâncias. Enquanto andamos para trás e para a frente no tempo, Gendry-Kim vai-nos apresentando a sua protagonista e as contradições de uma sociedade. Na actualidade, um programa de televisão tenta devolver ao país as vítimas da ocupação japonesa, estando muito longe da família e na terra natal. É aí que começa o livro, com OK-Sun Lee a deixar tudo para trás, a vida que as circunstâncias lhe trouxeram, para regressar a “casa” cinquenta e cinco anos depois. São histórias que têm preenchido a ficção sul-coreana, como uma tentativa de exorcizar alguns demónios colectivos, mas ganham aqui a visão e o traço de uma autora invulgar.
O traço tosco de personagens, por vezes à beira de serem um esquisso apressado e quase infantil, pode afastar quem se depare com o estilo de Gendry-Kim com um folhear acidental deste ou de outro livro seu. Mas é claro que vale a pena mergulhar a fundo: em “Erva” temos alguns dos momentos mais bem conseguidos do trabalho da autora. A força do seu trabalho está nas emoções que consegue transportar com a arguta planificação de algumas sequências.
Veja-se como a densidade e falta de acabamento do traço também trazem emoções importantes, como a presença (ou ausência) de diálogos também ajuda a criar uma atmosfera, como a construção das pranchas realça a opressão, a dificuldade de Sun-Lee em regressar às memórias, a ser abafada por elas até, ou à dificuldade de reviver a desumanidade que testemunhou na pele tão frequentemente. Ou, numa das sequências infelizmente inesquecíveis destas quase quinhentas páginas de BD, quando testemunhamos algo horrível que nos é contado através de pranchas a negro que nos encurralam nessa situação.
Mas Gendry-Kim sabe transportar-nos para imagens atrozes e, depois, fazer-nos sair delas, como se ela própria estivesse desesperada por um raio de sol entre tanto negrume. É uma maneira singular de nos fazer suportar tanto revoltante sofrimento. É inimaginável a força que é necessária para resistir a um tamanho inferno quase diário.
Apesar de assumir que muito se escreveu e desenhou sobre as casas de conforto, Gendry-Kim assume no posfácio que “ainda não tinha lido a versão que eu esperava e queria ler”. Terminada a leitura, é claro que concordamos com a sua decisão. Tendo interesse em tocar num ponto tão delicado da História do seu país, não sentimos que esteja a aproveitar-se da fragilidade das vítimas nem apenas a criar uma obra com mensagem, mas antes a transformar, com delicadeza e respeito, uma tragédia em imagens que tem de ser mais falada. “Erva” é imprescindível, e a par de “A Espera”, a obra de Gendry-Kim que mais merece ser descoberta dentro e fora do mundo dos leitores de BD.
Uma edição da Iguana (Penguin Livros), com tradução de Yun Jung Im que se aplaude porque, além de adaptar o texto original para a nossa língua, ainda nos dá espaço para assimilarmos algumas palavras e conceitos do idioma sul coreano.
