Em “Infância de Quarenta e Nove”, de Ludmila Ulitskaia, encontramos uma série de contos que no seu interior abordam sub-repticiamente o contexto histórico, expõem as dificuldades encontradas pelas personagens e as privações que conhecem. Mas, acima de tudo, estes contos trazem generosas doses de esperança. Não contem sair desesperados no final de cada pequena história deste livro. Preparem-se sim, para sair de coração cheio. É assim logo no primeiro conto, “O milagre da couve” no qual duas jovens órfãs, Dúlcia e Olga, que vivem com Ipátieva, a irmã da falecida avó, são incumbidas de ir comprar couves. Estamos em 1945, as privações são muitas, os racionamentos uma realidade, tal como as perdas humanas. Comovente e dotado de humanidade, pontuado por um tom de uma fábula, não poderíamos pedir melhor início para este “livrinho” composto por seis contos.
Todas estas pequenas histórias contam com ilustrações de Irene Hoffman, tradução do russo de Saodat Saybardieva e Maria Hermínia Brandão, e demonstram o enorme cuidado que a Flâneur colocou nesta preciosa edição. Esta editora já nos trouxe preciosidades como “Na presença da ausência” de Mahmoud Darwich, “Cem Frases para Leques” de Paul Claudel, “A Vida de Maria” de Rainer Maria Rilke, “99 Poemas” de Ryokan. De Ludmila Ulitskaia conhecemos romances como “Sonechka”, “O Caso Kukótski”, “Medeia e os seus filhos”, ou ficção curta como “Mentiras de Mulheres”. “Infância de Quarenta e Nove” traz-nos alguns contos. O formato do livro, quase de bolso, remete para essa falsa pequenez. A capa chama desde logo à atenção, com uma obra de Gennadii Gogoliuk. O facto desta pequena livraria/editora lançar um livro, já é motivo de sobra para despertar a atenção do leitor mais atento e do mais desatento. “A Infância de Quarenta e Nove” tem a marca de água de quem publica pouco, mas com um sentido, um critério.
Passemos para os contos, para o conteúdo do livro. Logo a seguir a “O milagre da couve”, ficamos perante “O patinho de cera”. Mais uma vez temos um pequeno pedaço da Rússia, do campo, das privações, das propriedades partilhadas por pessoas sem grau de parentesco ou ligação afectiva. Mas, também, da esperança, do sonho, com este a aparecer no formato de um patinho de cera, que é alvo de todas as atenções da jovem Valhka Bobróva. O trabalho no campo e as lições que aprendeu com o bisavô marcam “Pregos”, uma pequena história onde acompanhamos alguns episódios que marcam a infância do jovem Serioja. A importância de um ancião na vida de uma criança é algo que também acontece em “O Velho-Cochicha”, com o avô quase cego da protagonista a prestar uma valiosa ajuda à mesma.
Em comum entre estes breves contos temos a temática da importância da família, ou de um familiar. É também o que acontece em “Vitória de Papel”, quando a mãe decide organizar uma festa de anos para o filho e assim tentar que as restantes crianças aceitem-no. Existe uma certa inocência e candura a marcar esta história, mas também as marcas da guerra. “Metade dos miúdos não tinha pai” diz o narrador, algo que remete exactamente para as consequências da II Guerra Mundial na Rússia. “Infância de Quarenta e Nove” conquista pela sua simplicidade, pela sua capacidade de encantar, de inserir o contexto histórico com subtileza, de transportar-nos de volta à infância. São seis contos, pequenos, dotados de calor humano e de algumas doses de esperança, pequenas fatias de melancolia e algumas lições que marcam as suas jovens personagens.
“Infância de Quarenta e Nove” é publicado em Portugal pela Flâneur.