Em Alcatraz, Al Capone conta a sua história. Mas sendo a sua mãe a única ouvinte, naquela cela escura e angustiante, é claro que o gangster tem de aligeirar um pouco os factos, passando por cima de furtos de pequena ou grande monta e uns quantos homicídios. Tudo para mostrar à progenitora como, na verdade, ele foi sempre um bom menino.

É a história desse criminoso célebre, hoje mais presente no nosso imaginário graças ao que inspirou no cinema, na televisão e na literatura, do que pelo seu próprio “trabalho”, que interessou recuperar ao argumentista Swann Meralli e ao desenhador Pierre François-Radice. O resultado é uma banda desenhada simplesmente intitulada “Al Capone”, uma história colorida e editada em capa dura pela Ala dos Livros.

Capone passa por todos os pontos do seu percurso até então. Começa na infância, pela forma como subiu a pulso deixando, aos 21 anos, de ter cargos de pouca importância noutros gangues, e revela todos os passos que levaram à criação do seu império… sempre fazendo os desvios necessários para não contar à mãe o que realmente aconteceu. Mas se os textos da narração de Capone omitem certos dados ou reinventam os acontecimentos, as imagens não deixam dúvidas aos leitores sobre a quantidade de sangue que passou pelas mãos do carismático criminoso.

Mas no tempo presente, aquele homem já não é o temível gangster com um estatuto inquebrável. Capone já não é o “number one” de Chicago. É apenas o número 85 da prisão de Alcatraz. Mas é como ele próprio nos diz: “Infelizmente, quando se chega ao topo, só nos resta voltar a descer”.

É uma visão autobiográfica muito subjetiva, não porque esta é uma forma romanceada de olhar para a vida de Capone (algo que, creio, é intencional da parte dos autores), nem por falhas de memória do visado, justificáveis pelo avançar da idade… mas porque o “mamma’s boy” sabe que mentir é feio, exceto se for para esconder as horríveis circunstâncias da sua carreira. Mas nunca saberemos se a mãe acreditava realmente no seu filho, quando ele dizia que chegava sempre a um acordo civilizado em cada conflito.

Seria interessante descortinar como a história dos Estados Unidos nos anos 20 e 30 foi marcada pela Lei Seca, e como essa proibição das bebidas alcoólicas acabou por ser mais nociva do que a justiça americana previu: impedindo os consumos, acabaram por criar um submundo do crime incontrolável durante anos, que espalhou os seus tentáculos pelos vários caminhos do poder. A corrupção imperava na justiça e na política. O que teria sido diferente se todos os americanos pudessem beber em público?

Capone e seus capangas espalhavam o caos e o terror para levarem a sua avante: conseguirem os melhores carregamentos e os maiores lucros com bebidas mais ou menos falsificadas. Quantas vidas se perderam apenas para que as pessoas pudessem desfrutar de um copinho na clandestinidade.

Não deixa de ser curioso pensar que o legado de Al Capone seja mais visível, e atractivo, não nas obras que tentam reconstituir a sua vida com mais ou menos atenção ao realismo e aos factos, mas nas ficções que pegaram no seu impacto nos anos 20 e 30 na opinião pública. A glamourização da vida criminal era evidente, mesmo que os gangsters de James Cagney ou o “Pequeno César” por Edward G. Robinson acabassem por sofrer um final trágico, para os espectadores não ficarem com ideias em relação a enveredarem por uma carreira criminal. Tal como o “Scarface”, no original de Howard Hawks com Paul Muni a ser uma variação caricatural de Capone – até porque o título do filme era o epíteto desagradável com que muitos o identificavam nos tempos da Lei Seca.

Esta BD está também, em parte, interessada em reflectir sobre esse impacto do italo-americano na cultura de massas, e das diferentes faces dos média em relação a ele: tanto o apoiaram desmesuradamente como o condenaram, mas a primeira vertente foi mais frequente. São evidentes a referências aos filmes, pelos episódios que foram escolhidos para compor a narrativa (claro que o massacre de São Valentim é mencionado), porque os traços da personalidade de Capone estão presentes nas suas vidas ficcionais, ou mesmo porque há momentos que nos remetem para imagens marcantes que conhecemos de outros lugares – uma vinheta é uma réplica de uma das imagens promocionais da versão cinematográfica d’”Os Intocáveis”, por exemplo.

E é impossível não pensar em cinema ao ler esta BD porque o seu ritmo e sentido de humor fazem muito lembrar “Tudo Bons Rapazes”: o retrato de Scorsese do mundo da máfia, se bem que num tempo distante do de Capone, acaba por ser semelhante na abordagem “pop” divertida, e de um ritmo vertiginoso, em que a violência extrema, os gags e uma ironia por vezes difícil de engolir fazem parte da receita.

Os desenhos cartoonescos, que dão um ar algo grotesco às personagens, contrastam com as cores e a violência das situações. A BD passa ao de leve alguns momentos importantes do trajecto de Capone, mas a planificação da narrativa nunca parece atabalhoada. Houve certos elementos que interessaram mais à dupla de autores do que outros, e um deles é singular: a paranóia crescente de Capone na fase final da sua vida, misturada com alucinações e pesadelos – um desfecho mais patético do que o das personagens criadas a partir do mito, e uma decadência que o recente biopic com Tom Hardy falhou redondamente em transpor para o ecrã (mas esse filme é um erro completo).

E esta abordagem à vida e “obra” do gangster mais famoso do século XX fecha com um óptimo final que acaba por ser uma súmula do melhor que nos traz esta agradável leitura: é a história de um homem que se tornou num mito, um ícone que vemos a ser construído e desconstruído ao longo das páginas, em que as noções de verdade e mentira são questionáveis. Apesar de tanto se ter escrito e filmado à volta de Capone, Meralli e Radice provam que ainda tinham algo a dizer sobre ele, um criminoso que chegou a estar no “top of the world” e viveu os últimos dias com a lenda que criou à volta de si próprio. De qualquer forma, a mãe ficou orgulhosa.

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