Enquanto não chegam ao nosso mercado editorial as traduções portuguesas de ”Bestiá” [poesia] ou de “Et Vaig Donar Ulls I Vas Mirar Les Tenebres”, contentamos – um pouco tarde até, tendo em conta o lançamento em 2019 – com “Eu canto e a Montanha Dança” (“Canto jo i la muntanya balla”), o primeiro trabalho ficcional da catalã Irene Solà, que com apenas 34 anos encosta-se ao título de umas das vozes mais importantes e originais da corrente literária internacional. É exagero? Talvez, mas convenhamos debruçar sobre este livro, desde a sua estrutura, às suas decisões narrativas, passando pelas suas invocações e ao experimento com que a artista plástica e poetisa sempre pontua nas suas páginas. Um objeto pensado como único, idealizado como único e aventurado como único … o que precisaremos mais?
Editado entre nós pela Cavalo de Ferro em abril deste ano, com tradução a dois de Rita Custódio e Aléx Tarradellas, eis um livro quase bilíngue, onde essa convivência linguística é igualmente uma criação artística. O catalão, maioritariamente dominante, pausa com o castelhano, aqui entendido como um idioma autoritário, sob desejos de sobreposição, e nesse páreo todo aquele gesto algo folclórico que Solà traz-nos com exatidão transforma-se numa política de denúncia à unificação linguística ao serviço da Coroa de uma só Nação. Portanto, o catalão aqui inserido, expandido e maleado das suas propriedades litero-artísticas é, em todo o caso, uma atitude politizada. A tradução portuguesa esforça-se em transmitir ideia de dualidade, porém, a sensação falha perante o propósito (mas o que se há de fazer, visto que o processo de tradução descarta, previsivelmente, algumas intenções do material original).
Contudo, o que ficou dessa trasladação é a natureza e o espírito deste projeto: “Eu Canto e a Montanha Dança” persiste na coralidade do seu relato, cada capítulo premeia uma só voz, de personagens a objetos, de narradores indecisos a animais, de corços a cadelas, bruxas a caçadores, talhantes a aleijados, todos com os Pirenéus no horizonte, parte do cenário, parte da atmosfera. Reza a lenda que esta cordilheira nasceu enquanto túmulo improvisado de uma princesa que tão nova embarcou nos braços da Morte, sendo várias as versões e que Solà nunca prioriza um em prol da outra, as lendas são lendas, as suas variações são as suas variações, e assim se mantém como uma identidade cultural a merecer a sua preservação. A autora explorou esses mitos e ditos e os integrou naquilo a ser entendido como um livro de pupit, cuja estrutura inveja a tradição oral, aliás, cantado é o que se recomenda, numa espécie de poética sonorização e cantarolar de melodia evocadas a magias negras. Há toda uma ancestralidade respeitada e conservada nas suas páginas que requisitam essa leitura em “voz alta” como uma tradição.
As montanhas e as suas orlas florestais posicionam-se como o centro deste mosaico narrativo que se ”desloca” lado-a-lado com o tempo, cada capítulo não só passa de voz a voz, como também o tempo avança entre elas, sendo estes narradores, de uma só fez, estafetas ao serviço espaco-temporal, guias quase carrolleanos. De raios que se enfiam cabeça abaixo por poetas campestres – daqueles que não imprimem o seu trabalho – de bruxas comedoras de bebés até a filhos de Gigantes, existe aqui todo um rol de criaturas e situações mágicas, pisando fábulas e parábolas, encantando numa leitura de experiência rara, de escrita floreada e embelezada pelo imaginário do próprio leitor. Irene Solà faz deste seu primeiro romance um livro de cabeceira, de aura mística como poucos, encorajando as brasas de uma lareira como nossa companhia em noite frias, sendo que cada palavra ecoa nos urros dos “filhos da noite” que se movimentam para lá das nossas paredes. Um relato que percorre Eras e façanhas, amores e lutos, nascimentos e mortes, humanos e bestas, poesia e prosa e, sobretudo, o material e imaterial.
Demasiados elogios? Talvez! Mas “Eu Canto e a Montanha Dança” poderá ficar-nos como um dos livros únicos, um diamante bruto, quem sabe. Formidável exercício de escrita.
“Estas montanhas são sublimes. Primogénitas. De outro mundo. Mitológicas”