O nome e universo de Junji Itô são duas das marcas incontornáveis do universo da BD japonesa contemporânea. Quando a sua obra começou a ser publicada regularmente em Portugal, já tinha há anos o seu séquito de fãs, entre nós criado a partir da distribuição de muitas edições em língua inglesa. Mas nos últimos dois anos não só tivemos “Tomie”, um dos “clássicos” do autor, como também uma compilação de alguns dos seus melhores contos aterradores, e ainda um ou outro projecto mais inusitado… como o que agora nos traz a Sendai Editora

Inusitado porque, ao nome de Junji Itô, são comummente associadas coisas tão agradáveis como a paranóia, o absurdo, o terror concretizado nas imagens que cria, onde se encontram muitos corpos decepados, tripas de fora, rostos macabros que são inesquecíveis da pior maneira possível. Essas quase “marcas registadas” do criador de um universo grotesco e que lida com o pior do ser humano estão, apesar de tudo, inseridas neste pequeno livro em que o autor de mangá é assolado por uma ameaça incontrolável: os gatos.

“Yon e Mu: O diário felino de Junji Itô” conta isso mesmo: as peripécias de um homem a tentar perceber os gatos com quem é forçado a viver, ao mudar de casa com a sua noiva, desenhada de uma forma suspeita, como se ela tivesse algum propósito maléfico. Ela já tinha um bichano e decide arranjar outro, e as suas personalidades vão ser um mistério para o artista, fã de caninos quando aquele embate vai acontecer. É estranho pensar que, para alguém habituado a conviver com o horrível e a criar diariamente algumas das pranchas mais tenebrosas da BD, aqueles dois inocentes felinos vão ser a sua maior dor de cabeça. Por enquanto.

Apesar de termos aqui o estilo muito característico do autor, presente em alguns apontamentos absurdos e naqueles rostos diabólicos ou paranóicos, é com humor que se faz este diário entre gatos. Não é uma novidade: o próprio Itô afirma, nos extras deste pequeno livro, como sempre quis fazer rir, e como essa faceta esteve presente no início da sua carreira. É a prova da versatilidade de um mestre que, se já deu todas as provas que percebe da poda do terror, também consegue sobressair na comédia.

Mas os risos e sorrisos que provocam este livro têm uma particularidade: é que em certos momentos, Itô parece brincar com a imagem que as pessoas criaram da sua obra, e da expectativa que o ritmo das suas narrativas provoca em quem as lê. É evidente em várias passagens de “Yon e Mu” quando o receio do autor em relação aos gatos nos é transmitida, tornando-os quase figuras de terror mas num jeito de autoparódia, porque sabemos que o tom extremo com que Itô escreve este diário é totalmente exagerado para o “problema” em causa. Mas é esse exagero que torna tudo ainda mais engraçado. Vemos isso pelas maneiras como ele reage aos movimentos furtivos dos felinos, ou ao retratar as suas personalidades tão díspares: um nunca saiu de casa e, por isso, não tem vontade de descobrir o mundo lá fora; o outro veio das ruas e quer sempre sair da alcatifa.

Este diário é assim o relato da inaptidão de alguém a lidar com gatos. Mas, com o tempo, Itô lá acaba por se deixar convencer, e perceber como também sente um grande amor por aqueles dois pequenos seres. Quem já passou por isso vai perceber a “confusão de sentimentos”: digo mesmo que, tendo eu vindo de um meio sem gatos, ao descobrir quem vive com eles fica difícil não nos apaixonarmos pelo seu charme muito especial – e, talvez, passar a gostar mais deles do que dos cães (nesse campo não me incluo, mas aprecio igualmente uns e outros. Nem tudo na vida precisa de ser uma competição). E entenderão ainda melhor outras coisas que são aqui referidas, como o facto de que “para provocar um gato, tens que tocar no seu coração”. É verdade! Não basta querer brincar com eles, é preciso entrar num jogo muito próprio, com os seus ritmos e requisitos.

É uma bela surpresa, este “Yon e Mu”, divertidíssimo na forma como o autor concretiza as imagens monstruosas que os gatos lhe provocam, mas também as dinâmicas de poder entre Yon e Mu e, claro, o aspecto deliciosamente ternurento de que se faz a construção da relação entre o humano e os animais. Há fotografias incluídas e outras curiosidades num livro que vai ultrapassar, sem dúvida, os fãs do terror extremo de Itô. E é uma óptima maneira para convencer os cépticos dos felinos.

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