Luís Corte Real, editor da Saída de Emergência, continua enfrentando marés e tempestades para escrever a literatura que mais adora: o género Fantástico. Como mais de uma vez já ressaltou, o autor que criou o primeiro “detetive do oculto” da literatura portuguesa (o Benjamim Tormenta de “O Deus das Moscas Tem Fome” e “Assim Falou a Serpente”) e enveredou pelo subgénero da “história alternativa” em “Lisboa Noir: o Ano Louco de 1928”, é um tipo de ficção muito difícil de viabilizar no país.
“Reinos Bastardos” traz uma heroína muito mais delicada e menos atormentada pelos mil demónios do detetive – embora a sua história carregue todo o peso de uma orfandade e o desejo incontrolável de conhecer as suas origens. Runa é uma adolescente humana a viver na terra dos Ogros – depois de ter sido resgatada por um deles a pedido de uma mãe moribunda numa guerra selvática. Enquanto cresce em meio ao violento universo daqueles seres enormes e diferentes e, a despeito de ser uma “humana protegida”, a sua curiosidade aguça-se enquanto se fortalece fisicamente.
Em entrevista ao Libro Ex, Luís Corte Real falou da sua insistência no género, nas linhas diferenciadas deste romance (que revela uma preocupação com a paternidade e o qual dedica a filha) e nas diversas reflexões sobre a sociedade humana que o seu universo, livremente inspirado na própria História, oferece…
Como funciona para ti a criação dos “novos mundos” que caracterizam a literatura fantástica? Noto que em “Reinos Bastardos”, por exemplo, recorreu à História. Como foi o ponto de partida?
Foi a primeira vez que criei um mundo de raiz, algo tão comum no género da literatura fantástica. A grande influência de todos os escritores do género é Tolkien. Mas essa influência, por vezes, pode ser limitadora. É preciso aprender com ela, e, ao mesmo tempo, esquecê-la. Quais foram as minhas leis para criar o mundo de “Reinos Bastardos”? Torná-lo o mais credível possível. Que fosse diferente, mas estranhamente familiar. Não criar mais do que o estritamente necessário para a trama – sabemos que há mais mundo, mas não é preciso massacrar o leitor com detalhes desnecessários. E, por fim, assegurar que a trama e as personagens são um convite para esse mundo, onde o leitor deverá viajar com gosto, curiosidade, antecipação, medo e muita emoção.
O mundo dos ogros é agressivo e supersticioso e, de alguma forma, também lembra a trajetória num patamar anterior da nossa própria civilização…
Sim, por alguma razão os humanos chamam aos territórios ogros de “Reinos Bastardos”. É um termo pejorativo que deriva da brutalidade dos clãs e das superstições em que acreditam. Mas também há sabedoria nos clãs… algo de que nos vamos apercebendo ao longo da narrativa.
Essa possibilidade de, a partir da sua protagonista e o meio onde vive, ver o mundo humano sob o ponto de vista dos ogros, permite sempre algumas reflexões sobre a nossa própria sociedade.
Uma reflexão sobre a nossa própria sociedade, sem dúvida, e, acima de tudo, uma reflexão sobre a importância da família, em particular da figura paterna, mesmo quando não tem ligação de sangue.
Desta vez deu um protagonismo mais delicado à sua heroína, cujo trauma era não saber de onde tinha vindo. É muito diferente do Benjamin Tormenta, que representava um mundo mais violento, ambíguo e atormentado!
O livro começa com Runa em criança e termina com ela adolescente. Em “Reinos Bastardos” acompanhamos o seu crescimento, os seus medos e inseguranças, as suas descobertas e tragédias pessoais. Já Benjamim Tormenta, o famoso detetive do oculto da Lisboa oitocentista, aparece-nos sempre como um homem feito, um anti-herói, um campeão amaldiçoado.
Tem insistido em trilhar a senda do Fantástico em Portugal a qual, como já ressaltou muitas vezes, é bastante dura em Portugal. Mas a paixão é o que conta, certo?
Não vou dizer que escrevo para mim, como fazem alguns autores. Eu escrevo para os leitores. Mas só consigo escrever o que gosto. E o que gosto é de literatura fantástica. Ou seja, eu escrevo para os leitores de literatura fantástica. Mas dentro do género, escrevo coisas muito diferentes, tão diferentes que parecem escritas por pessoas distintas. E tenho sempre um cuidado: escrever de forma a que mesmo os leitores que nunca leram nada do género fantástico possam tirar prazer dos livros.
Já tem um novo projeto?
Estou a terminar o segundo volume de “Lisboa Noir”. Depois vou escrever a continuação do “Reinos Bastardos”, intitulado: “Reinos Humanos”. Mais à frente, adorava regressar ao Benjamim Tormenta.