A Academia Goncourt, em Paris, coroou o escritor franco-argelino Kamel Daoud com o Prémio Goncourt 2024 pelo romance “Houris” [“Horas”], um relato ficcional sobre os massacres da “década negra” na Argélia (1992-2002). Porém, o reconhecimento literário veio acompanhado de um intenso tumulto político e cultural.
A obra, publicada pela Gallimard, foi proibida na Argélia ao abrigo de uma lei que silencia qualquer evocação da guerra civil. Além disso, a editora foi banida da Feira do Livro de Argel, levando a Academia Goncourt a suspender a 7.ª edição do Choix Goncourt na Argélia. A instituição denunciou veementemente “o ataque à liberdade de expressão” através de comunicado e referiu ainda a detenção arbitrária do escritor Boualem Sansal, acusado de ameaçar a segurança do Estado argelino.
Em “Houris”, Kamel Daoud coloca-se na pele de Aube, uma jovem grávida que narra à filha por nascer os horrores de um massacre que desfigurou a sua vida. Contudo, o romance enfrentou acusações de plágio. A advogada Fatima Benbraham, em nome da Organização Nacional das Vítimas do Terrorismo e de Saâda Arbane, uma mulher argelina de 31 anos sobrevivente de um massacre real, apresentou queixas contra Daoud e a sua mulher, alegando que a obra expôs a história de Arbane sem consentimento. Declarou ter sido vítima de uma grave violação da sua privacidade e da confiança depositada na relação com a psiquiatra que a tratou, a mulher do escritor Kamel Daoud.
Apesar do silêncio do autor, a Gallimard defendeu “Houris”, frisando que, embora inspirado em eventos reais, o livro é uma ficção pura, alvo de uma campanha difamatória alinhada com o regime argelino.
Crítico feroz do islamismo radical, Kamel Daoud já tinha recebido em 2015 o Prémio Goncourt de Melhor Primeiro Romance com “Meursault, contra-investigação”, resposta contemporânea a “O Estrangeiro” de Albert Camus [ler artigo], o seu único livro publicado em Portugal (Teodolito). Agora, com “Houris”, reafirma-se como uma das vozes mais audazes e relevantes da literatura contemporânea, mesmo sob a ameaça de censura e repressão. Esta vitória não é vista como apenas literária, mas também um grito de resistência contra regimes opressivos e censuradores.