Dos escritores que melhor se saíram após a abertura do mercado internacional ao policial escandinavo por Stieg Larsson, Jo Nesbø surgiu recentemente com este livro contendo cinco contos, em Portugal publicado pela Leya (chancela Dom Quixote).
Os dois primeiros surgem fortemente marcados pela pandemia – ambos desenvolvidos em cenários incomodamente distópicos. Em “A Ilha das Ratazanas”, Nesbø toca num problema recorrente nos contos, o conflito de classe, começando a sua narrativa pela forma como os privilegiados esperam helicópteros para fugir de uma cidade tomada por um caos pós-pandémico. “Segundo Hobbes, sem um contrato social, seremos lançados num caos pior do que a pior das ditaduras. E da maneira como estão as coisas, ele tinha razão”. O que diz um personagem reflete um mundo de falência absoluta das instituições, com ruas tomadas por gangues de “motards” sanguinários e onde entrelaçam-se as vivências dos personagens mais ricos.
O tema voltará no terceiro conto, “As Cigarras”, onde a relação entre ricos e menos favorecidos é abordada através da amizade entre dois jovens numa praia em Espanha – um aspirante à artista e um herdeiro. As coisas se complicam quando um deles salva de morrer afogada uma jovem do Quirguistão – a raiz do conflito. As cigarras, por seu lado, são animais cujo famoso ruído é emitido pelo macho em tempos de acasalamento – “escravo dos seus instintos sexuais”…
Antes disso, outro cenário sombrio e futurista povoa as páginas de “O Triturador”, uma máquina de destruir memórias a qual recorrerá um cientista que havia descoberto o segredo da imortalidade. O tema aqui é a morte, “a seriedade suprema”, o “inimigo” que fatalmente há de nos encontrar. Se referências à ciência são dispersas ao longo do livro, neste caso o método científico está no centro da história.
Um dos grandes momentos do livro é “O Antídoto”, uma terrífica e violenta história num cenário entre pai e filho passado na classe alta londrina. Caracterizada por uma relação de frieza e ausência, o relacionamento tem novas nuanças na fase adulta do filho, uma figura errática e sem empatia que vaga pelos prazeres dos sentidos e de disparates com umas tantas consequências. O pai, por seu lado, tenta preencher o absoluto vazio de uma vida fútil resolvendo criar cobras venenosas no interior do Botsuana. A partir daí, segue-se um enredo com toques de macabro, reviravoltas e nenhuma centelha de redenção.
O último conto, “O Cavalo Preto”, também se passa num futuro não propriamente animador – neste caso uma Milão na qual sobrevive uma ilha de favorecidos cercada por bairros de lata. Tudo ocorre após uma Grande Guerra, onde 12 corporações dividem entre elas o destino da humanidade. O protagonista descobre sua razão de viver como assassino – enquanto se disfarça fazendo hipnoses num consultório. A coisa se complica quando um rival o apanha numa complexa armadilha, onde a metáfora do jogo de xadrez (de onde o cavalo preto) serve para um jogo tão cerebral quanto visceral.
Neste sentido, o livro de Jo Nesbø se destaca de forma muito mais interessante que as banalidades de muitas histórias policiais – embora dificilmente trazendo uma visão redentora ou muito edificante da raça humana. O seu futuro, conforme fantasiado por um autor da rica Escandinávia, não parece, de todo, promissor.
