Já foi há mais de uma década que Guy Delisle, autor de BD canadiano responsável por retratos contundentes da China ou da Coreia do Norte, publicou o resultado de um ano de vivências na terra santa, que junta vários credos e muitas tensões. Essa obra foi premiada no Festival de Angoulême em 2012, e só no final do ano passado é que obteve edição portuguesa pela Devir, que antes já nos trouxera outras três obras de Delisle (as já mencionadas e ainda “Crónicas da Birmânia”). 

Este atraso considerável é, no entanto, a prova da actualidade deste relato: doze anos depois do prémio máximo naquele festival de BD, lemos hoje “Crónicas de Jerusalém” e não sentimos, infelizmente, algum aspecto realmente datado. Na verdade, nada mudou, por todas as óbvias razões: nem o problema entre Israel e Palestina diminuiu, como todos sabemos, nem a percepção errada e estereotipada do conflito se dissipou entretanto (talvez, até, haja mais desinformação hoje sobre esta controvérsia, até porque na era digital, quanto mais um assunto é dissecado, mais provável se torna depararmo-nos com distorções da realidade para agradar a certos interesses). 

Guy Delisle é um observador de tudo o que o rodeia, dando-nos uma visão detalhada e complexa das múltiplas realidades existentes no espaço israelita. Com humor, ironia e algum sarcasmo, o autor não deixa muito de fora das suas vivências, que roçam o demasiado íntimo: temos uma visão pormenorizada que passa desde as suas deambulações entre checkpoints à dificuldade de viver ali, entre picardias possíveis entre grupos religiosos, com a mulher a trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras e duas crianças pequenas para cuidar, às pessoas que vai conhecendo e que variam nas suas origens, circunstâncias, opiniões e religiões. Uma das personagens mais curiosas que aparecem neste livro é um padre que desafia os estereótipos por aquilo que diz e por ler obras de BD nada recomendáveis a um sacerdote. 

Numa estrutura episódica, as “Crónicas de Jerusalém” revelam-nos facetas desconhecidas dos povos que habitam aquela terra, as injustiças sociais, os polémicos colonatos e a herança pesada de décadas de conflito israelo-palestiniano, bem como a diversidade de opiniões e de nichos entre cada religião, com grupos mais ou menos ortodoxos, mais ou menos preconceituosos. No meio disto tudo, há pessoas inocentes que tentam sobreviver. 

Apesar de haver um ambiente tenso patente em quase todo o livro, em que raramente sentimos estar seguros, sem que seja provável que alguma coisa errada possa acontecer, há espaço para apreciar alguma beleza dos locais e de algumas tradições das religiões. Noutras páginas, engolimos em seco, como o momento em que Delisle testemunha o dia da lembrança da Shoah, quando toda a gente, às dez da manhã, pára o que está a fazer durante dois minutos em homenagem às vítimas do holocausto. 

Este estranho em terra estranha não deixa nunca, no entanto, de questionar aquilo que lhe mostram, e constatar a dureza e arcaísmo de certos rituais. O que leva a que, às tantas, ao olhar da janela de sua casa para baixo, onde decorre uma festa de casamento, constate que ali só estão homens, o que faz aquilo parecer um festival de banda desenhada… 

O autor/espectador, testemunha das variadíssimas contradições e lutas religiosas/étnicas naquele território, acabou por construir, ao longo de mais de 300 páginas, um relato denso e provocador sobre um conflito que continua a fazer correr rios de tinta, e que está longe de terminar. Delisle tenta manter um olhar isento, mas este é o olhar de um ocidental cheio de questões e que detesta uma abordagem simplista à complexidade de camadas da vida em sociedade. E com tantas mortes referidas, bem como alguns atentados das duas facções, é difícil não escolher um lado no fim deste livro, depois de tanto ficarmos a saber sobre Israel e as suas estratégias em “fazer passar o outro lado pela encarnação do mal”, de um estado que, citando um jornalista israelita de que Delisle aproveita no seu relato, “Israel é uma democracia para os judeus, mas é um país judeu para os árabes que o habitam”, um lugar que vigia o povo palestiniano mesmo quando os seus elementos já morreram, para “ter a certeza de que não voltamos a sair”, como nos diz outra personagem noutro momento da obra. 

Para tentar perceber alguma coisa desta problemática, “Crónicas de Jerusalém” é uma boa opção de leitura. Mas além do tema, e das implicações do que aqui é contado, também é importante dizer que se trata de uma óptima banda desenhada. Certo é que, por mais que esta seja a terra santa, ao terminar a leitura fiquei com a mesma sensação de Delisle: “quando vemos o espectáculo dado pela religião por estas bandas, não ficamos com grande vontade de ser crentes”. 

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