Muitas vezes, quando ouço leigos na matéria a falarem de banda desenhada, trazem a questão do tempo à baila: “isso da BD é para pessoas que querem ler livros num dia, é só bonecos, é muito fácil ler trezentas páginas em poucas horas”.
Não é que “Aqui” seja um livro que vá contrariar esse preconceito: na verdade, uma leitura até feita de uma forma tranquila não levará muito tempo a terminar. Mas este é o caso de um livro que eleva a BD a algo mais pelo simples motivo de que não o poderemos compreender na sua totalidade numa só leitura, e que cada prancha pode, até, encerrar em si vários mistérios que nos podem levar mais tempo a assimilar.
A obra de Richard McGuire, premiadíssima e aclamadíssima, chegou até nós, como acontece com muitas edições nacionais de material estrangeiro, à boleia de outra coisa. Neste caso, de uma adaptação ao cinema que juntou o realizador Robert Zemeckis a Robin Wright e Tom Hanks, trio que já não trabalhava em conjunto desde “Forrest Gump”. A edição da Cavalo de Ferro emula a original no formato, sendo fiel ao propósito do autor.
Esta não é uma única história, mas uma série delas em várias épocas, literalmente desde o início até ao fim dos tempos… tudo a acontecer no mesmo espaço. São pranchas duplas que nos revelam aquilo que é uma sala de estar de uma casa construída no início do século XX nos EUA. Mas aquele espaço tanto nos leva às várias gerações que habitaram ali como ao que existia antes, e existiu depois, da sua construção.
“Aqui” vai saltando para trás e para frente, deixando pequenas situações por “resolver” até muitas páginas adiante, revelando outras, aproveitando a dimensão das duas páginas para nos levar nessas constantes viagens temporais mas, também, abarcando vários tempos na mesma dupla de páginas: através de vinhetas, tanto podemos estar, em simultâneo, em 1870, 1959, 1973 e 2014. É curioso aquilo que é dito sobre aquele espaço e os conflitos que são inseridos em cada tempo: do colonialismo à monarquia, passando pelo fim do mundo ou a morte, há muito para descobrir em cada página, que tem de ser lida com atenção.
Por vezes, o autor junta situações semelhantes, ou que se cruzam, entre os vários níveis temporais, noutras utiliza esses cruzamentos para dizer qualquer coisa sobre a humanidade, ou sobre a história daquele espaço, ou sobre o envelhecimento das personagens. Conhecemos muitas e será difícil, lá está, apanhar tudo “à primeira”. É mais uma prova (se por acaso faltassem) de como isto dos “bonecos” tem muito que se lhe diga…
Já muito foi escrito sobre “Aqui”, e a fama desta BD é justificada pelo aspecto inovador da sua abordagem, mas também porque McGuire não se limita apenas a mostrar a inteligência do dispositivo que criou: sabe criar pequenas histórias humanas que dizem muito sobre o que Sérgio Godinho soube tão bem cantar: “quem éramos nós, quem queríamos ser, quais as esperanças que a vida roubou”.
E é curioso ler o livro depois de ver o filme de Zemeckis: mais convencional, acaba por aliar um certo experimentalismo ao utilizar as vinhetas para cruzar as várias histórias. Mas perde fulgor ao desenvolver algumas das narrativas com clichés e criando outras que são irregulares (a graça da BD é que é fácil saltar de um tempo para outro sem que tenhamos de dar muito por isso, enquanto o filme não consegue ter essa capacidade mais saltitante e arriscada).
A versão cinematográfica de “Aqui” dá, no entanto, algumas coisas interessantes, principalmente na relação entre Wright e Hanks, que faz o filme e lhe dá a espessura dramática que falta a algumas das sub-histórias paralelas, carregando alguns pormenores do livro de um sentimentalismo desnecessário e perdendo mais força pelo abuso de CGI e de alguma infantilização da experiência humana. Em suma: o filme vê-se uma vez, mas o livro é um objecto ao qual voltaremos várias vezes, porventura ao longo de toda a vida.
