André Diniz tem feito um percurso sólido na banda desenhada brasileira: com três dezenas de livros publicados e prémios e honrarias diversas, o seu traço característico marca uma das vozes mais originais e entusiasmantes dos “quadrinhos”, que ultrapassou o contexto brasileiro com narrativas tão diferentes como “Morro da Favela”, “Malditos Amigos” ou “Entre Cegos e Invisíveis”.

O que é mais interessante na obra do autor é que não parece confinar-se a um estereótipo, a uma fórmula ou a uma padronização de linguagens e histórias. E não é um artista com medo de desafios: já uma prova que tínhamos disso era a inusitada adaptação de “O Idiota” de Dostoievski, autor tão palavroso que foi transformado numa BD… sem palavras.

Desafiante é também este seu Muzinga, personagem antiga que já teve outras vidas em experiências mais curtas, e que ganha aqui um livro seu, de grande fôlego, editado entre nós pel’A Seita. Este é um homem poliglota com quase dois séculos de vida que, nas palavras de Diniz, tem o humor que teria uma pessoa com essa idade, no seu entender. Agora com uma obra autónoma podemos apreciar esta criação peculiar em todo o seu esplendor, aqui em aventuras que misturam misticismo, surrealismo e um amor à cultura, à língua e a certas tradições.

Talvez “Muzinga” esteja “condenado” a ser um dos livros que mais vai dividir opiniões na obra de André Diniz. É uma obra em constantes experimentações de escrita e imagem, mas quem se deixar levar pelo mundo proposto é capaz de se surpreender, de se estimular constantemente.

São constantes as brincadeiras com a prancha. Diniz foge à planificação tradicional, fazendo com que a estrutura da história seja também uma parte integrante da percepção que temos dela. Mesmo quando o autor faz aqui uma abordagem convencional à BD, consegue mesmo assim dinamitá-la virando-a do avesso, transformando-a numa relíquia de outros tempos.

Muzinga é obcecado por relíquias, mas também por manter vivas as culturas moribundas, ligadas à máquina, prestes a desaparecerem do mundo. Neste álbum de quase duzentas páginas a preto e branco lá vamos acompanhando as peripécias algo absurdas, algo transcendentes, deste homem quase bi-centenário em prol do conhecimento.

O traço irrepreensível de Diniz é acompanhado por um trabalho apurado de escrita, numa BD cheia de frases impressionantes que apetece guardar para sempre na nossa memória. Uma delas nunca esquecerei, pelo menos: “A escrita é a forma mais poderosa de vencer o tempo”. Nota-se que fazer esta narrativa foi um prazer para o seu autor, mas também um processo de constantes aprendizagens que ele nos transmite com muita espontaneidade.

Assim conclui-se que, visual e linguisticamente, “Muzinga” deve ser o livro mais surpreendente de André Diniz. É sem dúvida um dos seus trabalhos mais complexos, e por isso também dos que serão mais difíceis de digerir a uma primeira abordagem. Assim recomenda-se que a leitura seja feita com calma, com tempo e cabeça, distante da voracidade do ritmo do quotidiano. Vale a pena aproveitar umas horas de descanso para nos concentrarmos no livro e deixarmo-nos levar por aqui que nos oferece.

Mais interessante será, depois de uma experiência tão invulgar como é a de nos confrontarmos com um livro assim, folhearmos as páginas dedicadas ao processo criativo do autor. Muzinga teve aqui o seu livro próprio, mas esperemos que continue a aventurar-se em territórios desconhecidos. Precisamos dele, da sua vontade, da sua energia em prol da cultura que nos torna imortais, ou um pouco menos efémeros.

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